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9.11.2017

 CAPÍTULO XV

Os Devotos do Senhor da Luz

No século XVII, os missionários jesuítas que retornaram das regiões ao sul dos rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, trouxeram consigo relatos sobre uma gente que eles diziam ser "cristãos de São João". Embora esse grupo vivesse no mundo muçul­mano e estivesse rodeado de árabes, ainda praticava uma forma de cristia­nismo no qual João Batista era proeminente. Seus rituais religiosos centra­vam-se, todos eles, no batismo, que não era uma cerimônia que acontecia uma única vez, como modo de iniciar e acolher novos membros à congre­gação, mas tinha um importante papel em todos os seus rituais e sacramentos.
Desde aqueles primeiros contatos, entretanto, ficou evidente que o ter­mo "cristãos de São João" era uma designação completamente imprópria. A seita em questão venerava especialmente João Batista, e seus membros não poderiam ser chamados de "cristãos" no sentido usual do termo. Pois eles consideravam Jesus um falso profeta, um mentiroso que deliberadamente des­encaminhou seu próprio povo, além de outros. Porém, tendo vivido sob con­stante ameaça de perseguição por parte de judeus, muçulmanos e cristãos, por séculos, adotaram a estratégia de se apresentarem aos visitantes utilizan­do uma aparência menos ofensiva. Foi por essa razão que adotaram o nome "cristãos de São João". Sua estratégia está implícita nestas palavras extraídas do seu livro sagrado, o Ginza:

Quando Jesus os oprimir, então digam: Pertencemos a ti. Mas não o professem em seus corações, nem neguem a voz de seu Mestre, o alto Senhor da Luz, pois para o Messias mentiroso o oculto não se revela.

Essa seita, que ainda sobrevive nos pântanos do sul do Iraque e, em menor número, no sudoeste do Irã - é hoje conhecida como madianitas. São um povo profundamente religioso e pacífico, cujas leis proíbem a guerra e o derramamento de sangue. A maior parte deles vive em seus próprios vilarejos e comunidades, embora alguns tenham se mudado para as cidades, onde tradi­cionalmente trabalham como ourives, em ouro e prata, trabalho no qual al­cançam a excelência. Mantêm sua língua e escrita próprias, ambas derivadas do aramaico, a língua falada por Jesus e João. Em 1978 somavam pouco menos de 15.000, mas a perseguição aos árabes dos pântanos por Saddam Hussein, após a Guerra do Golfo, pode tê-los levados quase à extinção - a situação política no Iraque impede que se obtenham dados precisos a esse respeito.
O nome madianitas literalmente significa gnóstico (de manda, gnose) e na verdade refere-se apenas aos leigos, embora seja com freqüência aplica­do à comunidade como um todo. Seus sacerdotes chamam-se nazoreanos. Os árabes referem-se a eles como subbas, e aparecem no Alcorão com o nome de sabeítas.
Nenhum trabalho acadêmico sério foi realizado sobre os madianitas até à década de 1880. Os estudos mais completos até hoje continuam sendo os de Ethel Stevens (mais tarde Lady Drower), realizados logo antes do início da II Guerra Mundial. Os acadêmicos ainda se baseiam em grande parte no material que ela coletou, que inclui fotografias dos rituais e cópias dos livros sagrados madianitas. Embora recebam bem os estrangeiros, eles naturalmente são, e com toda razão, um povo fechado e reservado, e Lady Drower levou muito tempo para merecer sua confiança a ponto de revelarem suas crenças, doutrinas e história, e lhe permitirem acesso aos pergaminhos secretos que contêm seus textos sagrados. (No século XIX, estudiosos franceses e alemães tentaram, sem sucesso, abrir uma porta nesse muro de sigilo e segredo.) Porém, sem dúvida ainda existem mistérios que não são compartilhados com forasteiros.
Os madianitas têm vários textos sagrados - toda a sua literatura é re­ligiosa -, sendo o mais importante deles o Ginza (Tesouro), também conhe­cido como Livro de Adão; o Sidra d'Yabya, ou Livro de João (também co­nhecido como Livro dos Reis), e o Haran Gawaita, que relata a história da seita. O Ginza data com certeza do século VII, ou antes, enquanto o Livro de João foi compilado, segundo se acredita, algum tempo depois. O João do livro é o Batista, que no texto madianita tem dois nomes, Yohanna (que é madianita) e Yahya, que é o nome árabe com que é citado no Alcorão. O último é utilizado com mais freqüência, indicando que o livro foi escrito após os muçulmanos terem conquistado a região na metade do século VII, embora o material contido nele seja muito mais antigo. A questão importante é: quan­to tempo mais antigo?
Acredita-se em geral que os madianitas criaram o Livro de João e ele­varam o Batista à condição de seu profeta como uma manobra inteligente para evitar a perseguição pelos muçulmanos, que toleravam apenas aqueles a que chamavam de "povos do Livro", ou seja, povos com uma religião que tinha um livro sagrado e um profeta; se assim não fosse, eram considerados pagãos. Entretanto, os madianitas aparecem no próprio Alcorão, com o nome de sabeítas, como um "povo do Livro", o que demonstra que eram conheci­dos muito tempo antes de estarem sob a ameaça do domínio muçulmano. De qualquer forma, eles foram perseguidos, particularmente no século XIV; quando os dominadores islâmicos quase os eliminaram por completo.
Em constante fuga de seu perseguidores, os madianitas finalmente che­garam ao lugar onde estão até hoje. Suas próprias lendas, e estudos modernos, mostram que eles originam-se da Palestina, de onde foram expulsos no pri­meiro século da era cristã.Ao longo dos séculos rumaram para todos os lados, mudando-se cada vez que deparavam com perseguidores. O que temos hoje é o remanescente de uma religião muito mais difundida.
A religião dos madianitas é uma completa e retumbante mixórdia: diver­sos fragmentos do judaísmo do Antigo Testamento, formas gnósticas heréticas do cristianismo e crenças dualistas iranianas estão todas misturadas em sua teologia e cosmologia. O problema está em separar o que era sua crença orig­inal do que foi incorporado posteriormente. Parece que os próprios madia­nitas esqueceram grande parte do significado inicial de sua religião. No entan­to, é possível fazer algumas generalizações a respeito, e uma análise apurada permitiu que os estudiosos chegassem a certas conclusões sobre suas crenças remotas. Foi essa análise que nos forneceu algumas pistas interessantes sobre a importância de João Batista e seu verdadeiro relacionamento com Jesus.
Os madianitas representam a única religião gnóstica sobrevivente em todo o mundo: suas idéias relativas ao universo, ao ato da criação e aos deuses são crenças gnósticas conhecidas. Acreditam numa hierarquia de deuses e semi-deuses, tanto femininos quanto masculinos, com uma divisão fundamen­tal entre os da luz e os das trevas.
Seu ser supremo, que criou o universo e as deidades menores, aparece sob vários nomes que podem ser traduzidos como "Vida" , Mente" , "Senhor da Luz" . Eles criaram cinco "seres da luz" , que automaticamente originaram cin­co entidades iguais mas opostas nas trevas. (Essa ênfase na associação da luz com o bem supremo é uma característica gnóstica: quase todas as páginas do Pistis Sophia, por exemplo, utilizam essa metáfora. Para os gnósticos ser ilu­minado significa literal e figurativamente entrar em um mundo de luz.) Como em outros sistemas gnósticos, foram esses semi-deuses que criaram e gov­ernam o universo material e a Terra. A humanidade também foi criada por um desses seres, chamado (dependendo da versão do mito) Hiwel Ziwa ou Pta­hil. Os primeiros humanos são o Adão e a Eva físicos - Adão Paghia e Hawa Paghia - e suas contrapartes "ocultas", Adão Kasya e Hawa Kasya. Os madian­itas acreditam ser descendentes de genitores dos dois mundos, o material e o espiritual, Adão Paghia e Hawa Kasya.
Seu equivalente mais próximo do Demônio é a deusa Ruha, que go­verna o reino das trevas, mas que também é considerada como o Espírito Santo. Essa ênfase em forças iguais e opostas do bem e do mal, masculino e feminino, é caracteristicamente gnóstica e está exemplificada nestas palavras:

...a terra é como uma mulher e o céu como um homem, pois eles tornam a terra fecunda.

Uma deusa importante, para qual muitas preces podem ser encontra­das nos livros dos madianitas, é Libat, que é identificada com Ishtar.
Para os madianitas, o celibato é um pecado; homens que morrem sem se casar são condenados a reencarnar. Por outro lado, porém, os madianitas não acreditam no ciclo de renascimento. Ao morrer, a alma retorna para o mundo da luz, de onde os madianitas outrora vieram, e é auxiliada em seu caminho por muitas preces e cerimônias, muitas das quais claramente se orig­inam dos rituais de sepultamento dos antigos egípcios.
A religião permeia todos os aspectos da vida diária dos madianitas, mas seu principal sacramento é o batismo, celebrado no casamento e mesmo nos serviços funerários. O batismo madianita consiste em imersão total em lagos especialmente criados e ligados a um rio, que é conhecido como Jordão. Parte de todo ritual é uma série complexa de apertos de mão entre o sacer­dote e aquele que está sendo batizado.
O dia sagrado dos madianitas é o domingo. As comunidades são diri­gidas pelos sacerdotes, que recebem também o título de "rei" (malka), embo­ra alguns deveres religiosos possam ser realizados pelos leigos. O sacerdócio é hereditário e consiste em três níveis: os sacerdotes comuns, chamados de "discípulos" (tarmide), os bispos e, acima de todos, o "cabeça do povo" ­embora ninguém tenha sido considerado digno de assumir esse papel ao longo do século.
Os madianitas afirmam que já existiam muito tempo antes do Batista, a quem vêem como um grande líder de sua seita, mas nada além disso. Dizem ter deixado a Palestina no primeiro século da era cristã, sendo originários de uma região montanhosa que chamam de Tura d'Madai, até hoje não identifi­cada pelos estudiosos.
Quando os jesuítas os encontraram pela primeira vez, no século XVII, pensou-se que eram descendentes dos judeus batizados por João. Hoje, no entanto, os estudiosos estão levando a sério suas afirmações de que já exis­tiam muito antes da época de João. Contudo, ainda preservam traços de sua estada na Palestina do primeiro século: sua escrita é semelhante à de Na­batéia, o reino árabe que fazia fronteira com Peréia, onde João Batista fez sua primeira aparição. Indicações no Hawan Gawaita sugerem que eles deixaram a Palestina em 37, mais ou menos na época da crucificação, mas se isso foi mera coincidência é impossível dizer. Teriam sido expulsos pelos seus rivais, os seguidores de Jesus?
Até recentemente os acadêmicos pensavam que a negação dos madia­nitas de serem uma seita judaica distinta era mentira, mas agora se reconhece que eles não têm raízes judaicas. Pois embora seus textos incluam nomes de alguns personagens do Antigo Testamento, eles realmente ignoram os cos­tumes e as práticas rituais dos judeus - por exemplo, os homens não são circuncidados e seu Sabá não é no sábado. Tudo isso indica que eles viveram outrora próximos dos judeus, mas nunca realmente fizeram parte desse povo.
Uma coisa sobre os madianitas que sempre intrigou os estudiosos é sua insistência em que suas origens remontam ao Egito. De fato, nas palavras de Lady Drower, eles se consideram, de alguma forma, "correligionários" dos antigos egípcios, pois um de seus textos sagrados diz que "o povo do Egito era da nossa religião".  A misteriosa região montanhosa de Tura d'Madai, que afirmam ser sua terra natal, foi onde a religião surgiu - entre as pessoas, dizem eles, que vieram do Egito. O nome de seu semi-deus, que governa mundo, Ptahil, tem uma semelhança incrivelmente próxima com o deus Ptah dos egípcios e, como vimos, suas cerimônias fúnebres parecem dever muito às dos antigos egípcios.
Após terem fugido da Palestina, os madianitas viveram nas terras dos partos e na Pérsia sob o domínio dos sassânidas, mas também se fixaram na cidade de Harran, que, como veremos, tem alguma importância para esta in­vestigação.

Os madianitas nunca afirmaram que João Batista foi seu fundador ou que inventou o batismo, e o consideram não mais do que um grande - de fato, o maior - líder de sua seita, um Nasurai (adepto). Dizem que Jesus tam­bém era um Nasurai, mas tornou-se "um rebelde, um herege, que desenca­minhou os homens [e] traiu as doutrinas secretas...".
O Livro de João conta a história de João e Jesus. O nascimento de João é profetizado em um sonho e uma estrela aparece sobre Enishbai (Isabel). Seu pai é Zakhria (Zacarias), e os dois genitores, como na história dos Evange­lhos, são idosos e sem filhos. Após o nascimento, os judeus conspiram contra o menino, que é levado por Anosh (Enoch) para sua proteção e escondido em uma montanha sagrada, da qual retorna com a idade de 22 anos. Ele então torna-se o líder dos madianitas, e, o que é interessante, é representado como alguém que tem o dom da cura.
João é chamado de Pescador de Almas e Bom Pastor. O primeiro ter­mo era utilizado em referência a Ísis e Maria Madalena e também - "Pes­cador de Homens" - a Simão Pedro e aos últimos dos vários deuses do Me­diterrâneo, incluindo Tamus e Osíris - além, é claro, de Jesus. O Livro de João inclui a lamentação do Batista por uma ovelha perdida que se atolou na lama por ter ele reverenciado Jesus.
Na lenda dos madianitas, João tinha uma esposa, Anhar, mas ela não tem um papel preponderante na história. Um elemento estranho na lenda é que os madianitas parecem desconhecer totalmente o episódio da morte de João, que é uma parte muito dramática do Novo Testamento. Há uma sugestão no Livro de João de que o Batista morreu pacificamente e sua alma foi levada pelo deus Manda-t-Haiy na forma de uma criança, mas isso parece ser uma imagem poética daquilo que eles pensam que deve ter acontecido ao Batista. Muitos de seus textos sobre João nunca tiveram a intenção de ser um relato biográfico factual, mas ainda assim é intrigante que eles ignorem o que teria sido, essencialmente, a morte de um mártir. Por outro lado, pode ser que o episódio seja central para seus mistérios mais ocultos.
E o que faz Jesus no Livro de João? Ele aparece com os nomes de Yeshu Messiah e Messiah Paulis (acredita-se que este último derive de uma palavra persa que significa "impostor") e, algumas vezes, como "Cristo, o Ro­mano". Ele aparece pela primeira vez na história se apresentando para tornar-se um discípulo de João; o texto é pouco claro, mas sugere que Jesus não era membro da seita, mas um forasteiro. Quando ele pela primeira vez vai até o Jordão e pede para ser batizado, João mostra-se céptico quanto a seus reais motivos e merecimento e recusa, mas Jesus finalmente o persuade. Ao ser batizado, Ruha, a deusa das trevas, aparece na forma de uma pomba e lança uma cruz de luz sobre o Jordão.
Após se tornar discípulo de João - em um incrível paralelo com as histórias contadas pelos cristãos sobre Simão Mago -, Jesus (nas palavras de Kurt Rudolph) "começa a perverter a palavra de João e muda o batismo do Jordão, e torna-se sábio através da sabedoria de João" .
O Hawan Gawaita acusa Jesus com estas palavras:

Ele perverteu as palavras da luz e transformou-as em trevas e converteu aqueles que eram meus e perverteu todos os cultos.

O Ginza diz: "Não acredite nele (Jesus) porque ele pratica feitiçaria e traição.
Os madianitas, com sua confusa cronologia, aguardam a chegada de um personagem chamado Anosh-Uthra (Enoch) que irá "acusar Cristo, o Ro­mano, o mentiroso, filho de uma mulher, que não vem da luz" e irá "desmas­carar Cristo, o Romano, como um mentiroso, e ele será amarrado pelas mãos dos judeus, seus devotos irão amarrá-lo, e seu corpo será assassinado".
A seita tinha uma lenda sobre uma mulher chamada Miriai (Miriam ou Maria), que foge com seu amante e cuja família a procura desesperadamente para trazê-la de volta (mas não sem antes lhe passar uma descompostura, expressa em linguagem bastante forte, chamando-a de "puta no cio" e "alguidar libertino"). Filha dos "governantes de Jerusalém", ela vai viver com seu marido madianita na foz do Eufrates, onde se torna uma espécie de profetiza, sentada em um trono e lendo o “Livro da Verdade". Se, como parece ser, a história é uma alegoria das viagens e perseguições da própria seita, indicaria então que, numa época passada, uma facção judaica juntara forças com um grupo não-­judeu e que, como resultado dessa fusão, surgiram os madianitas. Entretanto, o nome Miriai e sua descrição como uma "puta" incompreendida e persegui­da também é sugestiva da tradição de Madalena, assim como os detalhes so­bre ela ter deixado sua terra natal e se tornado uma pregadora ou profetiza. De qualquer modo, é interessante que os madianitas tenham adotado como seu próprio símbolo a figura de uma mulher.

Os madianitas parecem ser uma simples curiosidade antropológica, um povo perdido e confuso que foi congelado no tempo e absorveu algumas crenças bizarras ao longo dos anos. Entretanto, um estudo cuidadoso de seus textos sagrados revelou alguns paralelos impressionantes com outra literatu­ra antiga que tem relação com nossa investigação.
Seus manuscritos sagrados são ilustrados com representações de deuses que portam incríveis semelhanças com aquelas dos papiros sobre magia dos gregos e egípcios - do tipo utilizado por Morton Smith em sua pesquisa.
Foram feitas comparações entre as doutrinas dos madianitas e a dos maniqueus, os seguidores do professor gnóstico Mani (cerca de 216-76); de fato, existe um consenso de que a seita batismal de Mughtasilah, à qual o pai de Mani pertencia e dentro da qual o próprio Mani foi criado, eram os madianitas (ou durante seu longo êxodo em direção ao sul do Iraque ou em uma comunidade hoje extinta). As doutrinas de Mani foram, sem dúvida, influenciadas pelos madianitas - e foram as doutrinas deles, por sua vez, que exerceram enorme influência sobre as seitas gnósticas da Europa, incluindo a dos cátaros.
Alguns estudiosos, como G. R. S. Mead, assinalaram notáveis semelhanças entre os textos sagrados dos madianitas e o Pistis Sophia. De fato, uma seção do Livro de João chamada Tesouro do Amor é considerada por ele como "reminiscências de uma fase anterior" daquela obra. Também existem fortes paralelos com muitos documentos do Nag Hammadi que foram associados com os "movimentos batismais" que existiam naquela época. E notam-se grandes semelhanças entre a teologia dos madianitas e a de alguns dos Ma­nuscritos do Mar Morto.
Há uma outra conexão intrigante. Sabe-se que os madianitas se fixaram em Harran, na Mesopotâmia, que, até o século X, foi a sede de uma seita ou escola conhecida como sabeíta. Os sabeítas foram muito importantes para a história do esoterismo. Eram filósofos herméticos e herdeiros do hermetis­mo egípcio, e foram extremamente influentes em seitas místicas muçulma­nas como a dos Sufis, cuja influência por sua vez estendeu-se até a cultura do sul da França na Idade Média - como ilustram, por exemplo, os cavaleiros templários. Como Jack Lindsay diz em seu livro The Origins of Alchemy in Graeco-Roman Egypt:

Um estranho pacote de crenças herméticas, incluindo várias ligadas proximamente à alquimia, persistiu entre os sabeítas de Harran, na Mesopotâmia. Eles sobreviveram com uma seita pagã inserida no Islã... por pelo menos duzentos anos.
Os madianitas, como vimos, são ainda chamados de "sabeítas" (ou subbas) pelos muçulmanos de hoje, e portanto está claro que sua filosofia é que era bastante influente em Harran. Além do seu hermetismo, que outro legado deixaram para os templários? Teriam transmitido a eles sua reverên­cia por João Batista e talvez até mesmo o conhecimento secreto do Batista?
As ligações mais interessantes, entretanto, são com o enigmático quarto Evangelho. Kurt Rudolph, que é provavelmente o principal perito em madia­nitas hoje em dia, escreve:

Os elementos mais antigos da literatura madianita preservaram para nós um testemunho do ambiente Oriental do início do cristianismo, que pode ser utilizado na interpretação de certos textos do Novo Testamento (em particular os joaninos).

Vimos que muitos dos mais respeitados e influentes estudiosos do Novo Testamento do século XX consideram partes do Evangelho de João - principal­mente o prólogo "No início era o Verbo..." e algumas das discussões teológicas - como tendo sido "pinçadas" dos textos escritos pelos seguidores de João Batista. Muitos desses mesmos acadêmicos concordam em que esses textos compartilham uma origem comum: os livros sagrados dos madianitas. Já em 1926, H. H. Schaeder sugeriu que o prólogo do Evangelho de João - com a palavra Verbo no feminino, era "um hino dos madianitas extraído dos círculos do Batista". Outro estudioso, E. Schweizer, mostrou os paralelos entre o dis­curso sobre o Bom Pastor no Evangelho de João do Novo Testamento e o tre­cho sobre o Bom Pastor do Livro de João dos madianitas, concluindo que vieram da mesma fonte. É claro que essa fonte original não aplica a analogia do Bom Pastor a Jesus, mas a João Batista: o Evangelho de João do Novo Testa­mento efetivamente roubou-a dos madianitas/joanitas.
Alguns comentadores, como Rudolf Bultmann,concluíram que os madia­nitas atuais são, na verdade, descendentes dos seguidores do Batista - eles são a esquiva Igreja de João, que discutimos anteriormente. Embora existam razões suficientes para pensar que os madianitas atuais são apenas um ramo da igreja joanita sobrevivente, ainda assim é elucidativo prestar atenção ao sumário de W. Schmithals sobre as conclusões de Bultmann:

Por um lado [o Evangelho de] João manifesta grande proximidade com a concepção de mundo dos gnósticos. A fonte dos discursos, de que João se apodera ou na qual se apóia, tem, de modo geral, uma aparência gnóstica. Ela apresenta paralelos bastante próximos com os textos dos madianitas, sendo que os mais antigos estratos de suas tradições remontam ao tempo do cristianismo primitivo.

Já se argumentou, de maneira ainda mais abrangente, que o material apocalíptico em Q, a fonte dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, veio da mesma fonte do Ginza dos madianitas, e chegou-se inclusive a sugerir que o batismo cristão se desenvolveu a partir dos rituais dos madianitas.
As implicações desse plágio das escrituras são enormes. Seria possível que grande parte desse material tão estimado por gerações de cristãos - por conter ou representar as verdadeiras palavras de Jesus - estivesse totalmente relacionado a outro homem? E que esse outro fosse seu ferrenho rival, o profeta que não profetizou a vinda de Jesus, mas que era reverenciado como o próprio Messias - João Batista?
Investigações contínuas revelam mais e mais evidências de que os ma­dianitas representam uma linha direta que remonta aos seguidores originais de João. De fato, a mais antiga referência aos madianitas data de 792, quando o teólogo sírio Theodore bar Konai, citando o Ginza, explicitamente afirma que eles derivavam dos dositeanos. E, como já vimos, os dositeanos eram uma seita herética formada por um dos primeiros discípulos de João, parale­lamente ao grupo de Simão Mago.
E há mais. Vimos que Jesus era chamado de "nazoreano" ou "nazareno", que era também um título aplicado aos primeiros cristãos, embora não tivesse sido cunhado com a intenção de descrevê-los. Esse termo já existia e era utilizado por um grupo de seitas correlatas das regiões heréticas da Samaria e da Galiléia, cujos membros se consideravam os guardiões da verdadeira religião de Israel. Quando usado para designar Jesus, o termo "nazoreano" identifica-o como um membro regular de um culto que, a partir de outra evidência, parece ter existido desde pelo menos 200 anos antes de seu nasci­mento.
Mas lembre que os madianitas também chamavam seus adeptos de "Nas­urai": isso não é coincidência. Hugh Schonfield, ao discutir os nazoreanos pré-cristãos, afirma:

Há uma boa razão para acreditar que os herdeiros desses nazarenos... são os atuais nazoreanos (também conhecidos como madianitas) do baixo Eufrates.

O grande estudioso da Bíblia C. H. Dodds concluiu que os nazoreanos eram a seita à qual João pertencia - ou , mais corretamente, que ele liderava -, e que Jesus começou sua carreira como discípulo de João, mas deu início a seu próprio culto e levou o nome consigo.
É possível que os madianitas não estejam confinados ao Iraque e ao Irã de nossos dias (se é que conseguiram sobreviver às depredações de Saddam), podendo também estar representados por uma outra seita altamente secreta que ainda existe na Síria atual. São os Nusairiyeh ou Nosairi (algumas vezes também conhecidos como Alawites em virtude da cadeia de montanhas onde vivem.) O nome é obviamente próximo à "nazoreano". Mais uma vez aparen­temente islâmicos, sabe-se que adotaram os ornamentos dessa religião para se protegerem da perseguição. Embora seja sabido que sua "verdadeira" re­ligião é mantida em segredo, os detalhes dela, por razões óbvias, são difíceis de descobrir. Acredita-se, entretanto, que se trata de alguma forma de cris­tianismo.
Um dos poucos europeus que conseguiu chegar perto dos ensinamen­tos internos dos Nosairis foi Walter Birks, que escreveu um relato sobre eles em The Treasure of Montségur (em colaboração com R.A. Gilbert). Birks passou algum tempo na região durante a II Guerra Mundial e fez amizade com alguns dos sacerdotes. Seu relato é muito circunspecto, pois ele sempre hon­rou o pedido de segredo que lhe fizeram, mas pelo que diz parece ser muito provável que se trata de uma seita gnóstica muito semelhante à dos madianitas. Particularmente interessante é uma conversa entre Birks e um do sacerdotes Nosairi após terem discutido a questão dos cátaros e a possível natureza do Santo Graal. (Ele notou que alguns dos rituais centravam-se no uso de um cálice sagrado.) O sacerdote disse-lhe qual era o "o grande segredo" de sua religião: "Este graal de que você fala é um símbolo que representa a doutrina que Cristo ensinou a João, o Amado. Nós ainda o temos".
Recordemos a tradição" joanita" de algumas formas da maçonaria oculta européia e do Monastério de Sion - que os cavaleiros templários adotaram a religião dos "joanitas do Oriente", a qual consistia nos ensinamentos secretos que Jesus transmitiu a João, o discípulo amado. Estando claro que o Evange­lho de João era, originalmente, material sobre o batista, então explica-se a evidente confusão que assinalamos anteriormente entre João, o Amado, e João Batista.

A tradição dos madianitas sobre João Batista e Jesus encaixam-se es­pantosamente bem com as conclusões que delineamos no último capítulo: Jesus a princípio era um discípulo do Batista, mas se separou dele e, no proc­esso, levou consigo alguns dos seus discípulos. As duas escolas eram rivais, bem como seus respectivos líderes.
Tomados em conjunto, esses elementos formam um quadro bastante consistente. Sabemos que João Batista era uma figura altamente respeitada, com um grande número de seguidores - uma verdadeira igreja - que, en­tretanto, desaparece dos registros "oficiais", após uma breve menção nos Atos. Esse movimento, porém, tinha uma literatura própria, que foi suprimida, em­bora alguns de seus elementos tenham sido "tomados de empréstimo" pelos Evangelhos cristãos - especificamente o nascimento de João, em Lucas (ou sua fonte), e o Magnificat, o cântico a Maria. Mais surpreendente é a evidên­cia, dada acima, de que o mito do massacre dos inocentes ordenado por Herodes, mesmo sendo fictício, estava anteriormente ligado ao nascimento de João, que Herodes temia ser o verdadeiro "rei de Israel".
Dois outros movimentos que representavam uma grande ameaça ao cristianismo emergente foram fundados por outros discípulos de João: Simão Mago e Dositheus; ambas eram seitas gnósticas influentes na Alexandria. Signi­ficativamente, o material "batista" que foi incorporado no Evangelho de João do Novo Testamento também é gnóstico, e os madianitas são gnósticos. A conclusão óbvia é de que João Batista era gnóstico.
Existem também impressionantes paralelos entre os textos dos madia­nitas, Simão Mago, do Evangelho de João e dos coptas, principalmente o Pis­tis Sophia, que tem um papel importante em nossa investigação sobre Maria Madalena.
Nenhuma das seitas - madianitas, simonianos e dositeanos - associa­das com João Batista faz parte da religião judaica, embora todas tenham se originado na Palestina, duas delas no norte, na herética Samaria. E se esses grupos não eram de religião judaica, a conclusão clara é que João também não era judeu. Pois embora o desenvolvimento dessas idéias gnósticas possa remontar a outros lugares e culturas, principalmente o Irã, há uma clara linha de influência que nos remete à religião do antigo Egito. Foi lá que encontra­mos os paralelos mais próximos com as idéias e ações de Jesus, e significativamente, os madianitas afirmam descenderem dos antigos egípcios.
Apesar da confusão presente nos seus textos, muito do que os madia­nitas dizem sobre si mesmos foi confirmado pelos estudiosos modernos ­que eram, para dizer o mínimo, inicialmente cépticos sobre suas afirmações.
Os madianitas afirmam que os precursores de sua seita vieram do anti­go Egito, embora a seita seja originária da Palestina. Eles não eram judeus, mas viviam lado a lado com estes. Sua seita, conhecida então como nazorea­nos, era liderada por João Batista, mas já existia desde muito tempo antes. Eles o veneram, mas não o consideram nada além de um grande líder e profe­ta. Sofreram perseguições, primeiro por parte dos judeus, depois dos cristãos, e foram expulsos da Palestina, cada vez mais para leste, até chegarem a sua terra atual.
Os madianitas viam em Jesus um mentiroso, um embusteiro, um feiti­ceiro do mal, o que corresponde com a visão dos judeus expressa no Talmude, onde se diz que Cristo foi acusado de "desencaminhar" os judeus e que sua sentença de morte lhe foi imputada por ter sido condenado como ocultista.
Todas as seitas vinculadas a João Batista, embora individualmente se­jam relativamente pequenas, se tomadas em conjunto representavam um enorme movimento. Os madianitas, simonianos, dositeanos e os próprios cav­aleiros templários (existem argumentos favoráveis para que sejam incluídos) foram brutalmente perseguidos e suprimidos pela Igreja Católica em virtude de seu conhecimento sobre o Batista e sua reverência a ele, permanecendo apenas o pequeno grupo de madianitas no Iraque. Nos outros lugares, partic­ularmente na Europa, os joanitas passaram talvez a se mover pelo submundo, mas ainda existem.
Nos círculos ocultistas da Europa, dizia-se que os cavaleiros templários tinham obtido seu conhecimento dos "joanitas do Oriente". Outros movi­mentos secretos e esotéricos, como os maçons - especialmente as ordens que afirmam descender diretamente dos templários e também dos rituais egípcios - e o Monastério de Sion, sempre tiveram uma veneração especial por João Batista.
Resumindo os pontos principais da tradição joanita:

1. Ela dá ênfase especial ao Evangelho de João, pois afirma que este contém ensinamentos secretos transmitidos a João Evangelista ("o discípulo Amado") por "Cristo".
2. Há uma confusão evidente entre João Evangelista (o suposto au­tor do quarto Evangelho) e João Batista. Essa confusão permanece como cara­cterística da corrente principal da maçonaria. ­

         3. As "tradições secretas" referidas são especificamente gnósticas.

         4. Embora afirme representar uma forma esotérica de cristianismo, que guarda os "ensinamentos secretos" de Jesus, a tradição demonstra uma patente falta de respeito pelo próprio Jesus. Na melhor das hipóteses, parece considerá-lo um mero mortal, ilegítimo, talvez mesmo alguém que sofresse de delírios de grandeza. Para ao joanitas, o termo "Cristo" não significa divin­dade, sendo apenas um termo para designar respeito - de fato, qualquer um de seus líderes é conhecido como "Cristo". Por essa razão, quando um mem­bro de tal grupo se diz "cristão", isto pode não significar exatamente o que parece.

5. A tradição também considera Jesus como um adepto da escola de mistério de Osíris, assim como os segredos que ele ensinou também per­tenciam ao círculo interno osiriano.

Em seu formato original, o Evangelho de João do Novo Testamento não era uma escritura do movimento de Jesus, mas um documento que pertencera originariamente aos seguidores de João Batista. Isso explica não só a alta consideração que os joanitas demonstraram a esse Evangelho, como também a confusão entre João Evangelista e João Batista. Entretanto, no que diz res­peito à tradição joanita, essa confusão era deliberada.
Não existe qualquer evidência de um movimento "joanita" oriental que tenha formado uma igreja esotérica a partir da figura de João Evangelista. Existem, entretanto, evidências consideráveis da existência de uma tal igreja inspirada em João Batista. Esta ainda é representada pelos madianitas e talvez pelos Nosairi. Sem dúvida, os madianitas eram encontrados em vários lugares do Oriente Médio, embora as localizações sejam desconhecidas, mas hoje estão confinados a pequenas comunidades no Iraque e no Irã. É mais do que possível que já existissem na época das cruzadas, e portanto poderiam ter en­trado em contato com os templários; e é também provável que a igreja oriental de João tenha se tornado um movimento secreto ainda no início da era cristã.
Mesmo levando-se em consideração o tratamento atroz que receberam dos cristãos, é difícil explicar por que os madianitas continuam a expressar um ódio mortal por Jesus. É verdade que o consideram um falso messias que roubou os segredos do seu Mestre João e os usou para levar ao erro aqueles de suas próprias fileiras, mas após todo esse tempo a veemência de sua hos­tilidade parece inexplicável. Nem a perseguição que sofreram explica total­mente por que ainda dirigem um ódio tão fulminante a Jesus pessoalmente. O que poderia ele ter feito para merecer tal depreciação contínua, por sé­culos e séculos?