9.11.2017
CAPÍTULO XII
A Mulher que Jesus Beijava
A mulher conhecida como Maria Madalena tem uma enorme e evidente importância para os antigos movimentos secretos "herético” da Europa - ainda que, à primeira vista, isso cause certa perplexidade. Suas ligações com o culto da Madona Negra, com os trovadores medievais e com as catedrais góticas, com o mistério que ronda o abade Sauniere de Rennes-le-Château, e com o Monastério de Sion, indicam haver algo sobre ela que sempre foi considerado perigoso pela Igreja.
Como já vimos, muitas lendas nasceram ao redor dessa enigmática e poderosa mulher. Mas quem era ela, e qual seu segredo?
Existem, como já vimos, poucas referências explícitas a "Maria Madalena. nos Evangelhos do Novo Testamento. No entanto, fica claro, pela forma como ela é mencionada, que Madalena era, entre as mulheres, a discípula mais importante de Jesus. Na verdade, todas as mulheres que seguiam Jesus são ainda quase que totalmente ignoradas pela Igreja. As menções a elas geralmente subentendem que a palavra "discípulo” tem mais peso quando aplicada aos homens. De fato, o papel das discípulas foi deploravelmente minimizado pelos comentadores que vieram muito depois dos autores dos Evangelhos. Pois embora os judeus do primeiro século pudessem ter problemas sociológicos e religiosos com relação ao conceito da importância da mulher, em razão simplesmente de sua cultura, críticos de época mais recente não têm tal desculpa. No entanto, o debate sobre mulheres sacerdotes na igreja anglicana, para citar apenas um exemplo, mostra que pouco mudou em dois mil anos. Para aqueles que freqüentam a igreja, em qualquer lugar, "os discípulos” são automaticamente e exclusivamente proeminentes personagens masculinos, como Pedro, Tiago, Lucas e assim por diante, e não "Maria Madalena, Joana, Salomé...”, apesar do fato de que essas mulheres são listadas até mesmo pelos autores dos Evangelhos.
Durante as infindáveis discussões sobre as mulheres sacerdotes (mesmo as mulheres diretamente envolvidas tinham escrúpulos suficientes para não utilizar o termo "pagão” sacerdotisa), distorções inacreditáveis dos seguidores de Jesus foram apresentadas como ”provas" de que as mulheres não deveriam fazer parte do clero. Por exemplo, diz-se que Jesus escolheu seus discípulos apenas entre os homens, embora, como já vimos, haja mulheres que são nominalmente citadas como parte do seu séquito, ainda que a tradição judaica da época tivesse permitido aos autores dos Evangelhos a opção de ignorá-las totalmente, se assim fosse possível. O fato de terem sido citadas indica que tiveram um papel significativo e inegável no ministério papel que, com certeza, perdurou nas gerações cristãs seguintes. Pois como demonstraram conclusivamente Giorgio Otranto, professor italiano de história da Igreja, e outros estudiosos, por muitas centenas de anos as mulheres não só foram membros da congregação como realmente foram sacerdotes e mesmo bispos.
Como afirma Karen Jo Torjesen, especialista em estudos sobre as mulheres dos primórdios do cristianismo, em seu livro When Women Were Priests (1993):
Sob um alto arco da basílica de Roma, dedicado a duas santas mulheres, Prudentiana e Praxedis, está um mosaico retratando quatro figuras femininas: as duas santas, Maria, e uma quarta mulher cujos cabelos estão encobertos e cuja cabeça está encimada por um halo quadrado - uma técnica artística que indicava que a pessoa ainda estava viva à época da realização da obra. As quatro faces, sobre um fundo dourado reluzente, lançam olhares serenos. As faces de Maria e das duas santas são facilmente reconhecíveis A identidade da quarta, porém, é menos evidente. Uma inscrição cuidadosamente gravada identifica o rosto da esquerda como sendo de Theodora Episcopa, o que significa Bispa Theodora. A forma masculina para bispo em latim é episcopus; a forma feminina é episcopa. A evidência visual do mosaico e a evidência gramatical da inscrição indicam, sem margem para enganos, que a Bispa Theodora era uma mulher. O a de Theodora, porém, foi parcialmente apagado por raspagens feitas sobre a cerâmica do mosaico, levando à atordoante conclusão de que houve tentativas de eliminar a terminação feminina do nome, talvez já na Antigüidade.
Sacerdotes homens talvez tenham se enrodilhado em nós lógicos na tentativa de explicar essas representações de mulheres sacerdotes - alguns até tentaram descrever Theodora como a mãe de um bispo -, mas os fatos falam por si mesmos.As mulheres não eram apenas úteis para as tarefas equivalentes, no primeiro século, a preparar o café e fazer sanduíches; elas oficiavam a eucaristia e lideravam a congregação nos cultos. Não há indicações, naqueles primeiros dias, de que uma mulher sacerdote menstruada poderia de algum modo corromper o simbolismo do vinho e do pão, como acontece em tempos recentes.
Foi somente em novembro de 1992 que a Igreja da Inglaterra finalmente votou a espinhosa questão das mulheres sacerdotes e, por uma margem de apenas dois votos, decidiu permitir que elas fossem ordenadas. Embora não seja nossa intenção estender-nos sobre a controvérsia das mulheres sacerdotes, queremos expressar nossa simpatia para com as muitas mulheres que têm lutado contra tudo e contra todos para explicar a seus “superiores" homens que tudo o que estão pedindo é o retorno ao que ocorria nos primórdios da era cristã, e não um tipo de reinterpretação radical do século XX. Ao reclamarem permissão para serem ordenadas, essas mulheres pediam apenas que lhes fossem devolvidos os direitos que já tinham tido séculos atrás. (Surpreendentemente, o status real das mulheres no início da Igreja parece ter sido conhecido no século XVI: um tratado de Agripa sobre a superioridade das mulheres, discutido no capítulo 7, inclui as palavras "[nós não] ignoramos que muitas de nossas santas abadessas e freiras eram na Antigüidade, sem escárnio, chamadas de sacerdotes.)
Havia, entretanto, razões muito boas para as mulheres serem tão proeminentes no culto de Jesus, o que, infelizmente, tornou inevitável que certos tipos de homens procurassem suprimi-las e denegri-las. Embora tratemos dessa questão mais à frente, adiantaremos por agora que não há dúvida de que as mulheres desempenhavam as funções típicas de um sacerdote, nos primeiros anos da Igreja cristã, funções que eram pelo menos iguais às dos homens.
Uma das maiores defesas em favor do pressuposto de que somente os homens eram sacerdotes é a de que as mulheres citadas nas Epístolas e nos Atos apenas ofereciam hospitalidade aos apóstolos homens, enquanto estes seguiam pregando e batizando. Mulheres como Luculla e Filipa são reconhecidas por seu patronato, e é claro que muitas dessas mulheres eram ricas e talvez surpreendentemente independentes para sua época e cultura. Embora desafiemos a visão de que essa era sua única função, fica claro, a partir do modo como Maria Madalena é descrita, que ela foi uma das primeiras mulheres patronas.
Ela e outras mulheres "assistiam-lhes (Jesus e seus discípulos homens] com suas posses", indicando que elas os apoiavam financeiramente. Em todos os lugares as mulheres são descritas como “seguidoras dele", e as palavras originais realmente sugeriam total participação nas atividades e práticas do grupo.
Como já vimos, Maria Madalena é a única mulher nos Evangelhos não identificada por sua relação com um homem - como irmã, mãe, filha ou esposa. Simplesmente é mencionada por seu nome. Embora isso possa indicar que os cronistas da época ignoravam sua identidade, é mais provável que ela fosse tão conhecida que seria inconcebível que algum cristão não soubesse imediatamente de quem se tratava.
Embora, porém, suas relações com os outros sejam discutíveis, uma coisa claramente se depreende dos relatos dos Evangelhos: Maria Madalena era uma mulher independente. E, como assinala Susan Haskins, isso encerra a evidente sugestão de que ela "tinha algumas posses".
É significativo que muito poucos personagens dos Evangelhos sejam denominados como Maria (a) Madalena, e desses os dois que nos saltam à vista são Jesus (o) Nazareno e João (o) Batista (ou Batizador, que está se tornando o epíteto preferido).
Qual o significado do nome dela? "Madalena" parece significar "de Magdala" - segundo se diz, uma referência à cidade pesqueira de el Mejdel, na Galiléia. Não existe, porém, nenhuma prova de que seja isso, ou de que a cidade fosse conhecida como Magdala na época de Jesus. (De fato, el Mejdel era chamada de Tarichea por Josefo.) Havia, entretanto, uma cidade de Magdolum no nordeste do Egito, próxima da fronteira com a Judéia - provavelmente a Migdol mencionada em Ezequiel.
O significado de Magdala, por si só, abre-se a muitas interpretações possíveis, como "o local da pomba", "o local da torre" e "a torre-templo"."
Pode ser até mesmo que o nome de Maria seja tanto uma referência a um lugar como a um título, pois no Antigo Testamento há uma espantosa profecia (Miquéias 4:8):
E tu, torre do rebanho, fortaleza da filha de Sião, sobre ti cairá o primeiro poder; o reino da filha de Jerusalém virá.
Pois, como cita Margaret Starbird em seu estudo sobre o culto a Madalena, de 1993, The Woman with the Alabaster Jar, as palavras traduzidas como "torre do rebanho" são Magdal-eder, e acrescenta:
Em hebreu, o epíteto Magdala significa literalmente "torre" ou "elevado, grande, magnificente".
Seria a associação de Madalena com a torre e, mais significativamente, com a restauração de Sion, conhecida enquanto ela estava viva? É também muito interessante que Magdal-eder signifique "torre do rebanho", o que sugere uma torre de vigia ou guardiã dos pequenos seres - talvez até mesmo o "Bom Pastor" .
Maria Madalena já causou comoção em nossa época, quando se afirmou em The Holy Blood and the Holy Grail que ela fora mulher de Jesus. Embora essa sugestão não fosse de fato inédita, foi a primeira vez que a maioria das pessoas ouviu falar nisso, e, como era de esperar, a afirmação causou enorme alvoroço. A culpa associada com o sexo está tão profundamente arraigada em nossa cultura que qualquer indicação de que Jesus tenha tido uma parceira sexual - mesmo no contexto de um casamento monogâmico e amoroso - é vista por muitos como algo sacrílego e abominável. A idéia de um Jesus casado continua a ser considerada, de modo geral, muito improvável, na melhor das hipóteses, e obra do demônio, na pior. Contudo, existem razões suficientes para acreditar que Jesus realmente tinha uma relação íntima - e muito provavelmente com Maria Madalena.
Muitos comentadores observam que é muito estranho o silêncio total por parte do Novo Testamento sobre o estado civil de Jesus. Os cronistas daquela época e lugar costumavam descrever as pessoas em termos daquilo que as diferenciava das outras, e um homem com mais de trinta anos que ainda não fosse casado com certeza seria considerado algo muito peculiar. É preciso lembrar que nos baseamos na imagem de Jesus que nos foi pintada pelos autores dos Evangelhos e suas fontes, e que a perspectiva destes era essencialmente judaica. Os judeus consideravam o celibato como impróprio, pois sugeria uma relutância em procriar uma nova geração do povo escolhido pelo Senhor, e era alvo de reprovação por parte dos anciãos da sinagoga. Alguns rabinos do século II, de acordo com Geza Vermes, "comparam a abstenção deliberada em procriar com assassinato". As genealogias contidas na Bíblia, com freqüência sem qualquer base, provam que os judeus eram uma raça orgulhosamente dinástica, e, na verdade, eles ainda prezam fortemente os laços familiares. O casamento sempre foi fundamental para o modo de vida dos judeus, ainda mais quando a nação estava sob ameaça, como no período em que esteve sob o jugo romano. Um pregador carismático e famoso que não fosse marido e pai seria motivo de escândalo, e somente por milagre seu grupo duraria muito tempo, ainda mais depois da morte de seu fundador. .
De acordo com o Novo Testamento, Jesus e seus seguidores tinham muitos inimigos. No entanto, não existem acusações, pelo menos que tenham chegado até nós, de que fossem homossexuais - como certamente haveria se tivessem sido um grupo de homens celibatários. Se tal escândalo tivesse ocorrido, com certeza teria chegado até Roma e saberíamos disso hoje. Insultos desse tipo não são propriedade exclusiva dos tablóides modernos; Pilatos e sua corte eram romanos sofisticados e cosmopolitas, e os judeus reconheciam a existência do homossexualismo, ainda que apenas como algo que condenavam. Se Jesus e seus discípulos fossem celibatários e pregassem o celibato, isso por si só teria causado grande tumulto entre as autoridades.
Os eruditos costumam evitar a questão do celibato, aceitando como fato a postura tradicional da Igreja de que Jesus não era casado. Quando o assunto é discutido, porém, as dificuldades em provar seu estado civil emergem de modo muito claro. Por exemplo, como já vimos, Geza Vermes, em sua tentativa de definir o Jesus histórico, chegou à conclusão de que ele se encaixa melhor na figura de um Hasidim, os herdeiros dos profetas do Antigo Testamento. Vermes tentou relacionar - algumas vezes com sucesso, outras nem tanto - as ações e os ensinamentos de Jesus segundo esse papel, comparando-os com os de um conhecido Hasidim daquela época e lugar. Entretanto, quando chega à questão do celibato de Jesus (que ele aceita), vê-se metido em dificuldades. Termina por admitir que a maioria dos indivíduos Hasidim que serviram de comparação eram casados e tinham filhos. Na verdade, ele apenas consegue trazer à baila uma outra figura daquela cultura que glorificava o celibato, Pinhas ben Yair, que viveu um século depois de Jesus e nem sequer era realmente um Hasid! E isso, por mais incrível que possa parecer, foi suficiente para Vermes concluir que Jesus tinha um estilo de vida semelhante. Mas há outros que não se convencem tão facilmente. De fato, o celibato de Pinhas era tão incomum que por si só lhe angariou notoriedade. Não há qualquer indicação de que o estilo de vida ou a mensagem de Jesus enfatizasse ou promovesse o celibato: se assim fosse, com certeza saberíamos.
É verdade que havia algumas seitas judaicas, como a dos essênios, que eram celibatárias, embora, mais uma vez, saibamos disso porque tal fato era incomum o bastante para merecer um comentário específico. Alguns utilizaram isso em favor do argumento de que Jesus era essênio. Entretanto, a seita não é mencionada uma única vez sequer em todo o Novo Testamento, o que dificilmente seria o caso se Jesus fosse seu membro mais famoso.
A hipótese de que Jesus fosse casado já foi citada muitas vezes por comentadores modernos, mas o silêncio dos Evangelhos sobre o assunto pode gerar uma outra interpretação. Pode ser que ele tivesse uma parceira sexual que não fosse sua esposa, ou com a qual vivesse uma forma de casamento que não era reconhecida pelos judeus.
(Devemos lembrar que a tradição herética enfatiza que Jesus e Madalena eram parceiros sexuais, não marido e mulher. Como vimos, os Evangelhos Gnósticos, os cátaros e outros pertencentes à rede secreta, quando não se referem a ela especificamente como "concubina" ou "consorte" de Jesus, são cuidadosos ao utilizar tais termos ambíguos para referir-se à "união" deles.)
Como prova positiva do estado civil de Jesus, argumenta-se que as bodas em Canã, quando Jesus transformou água em vinho, foram de fato as suas próprias. No relato, sua condição parece ser a de recém-casado. É esperado, por razões de outro modo inexplicáveis, que ele forneça o vinho para a festa de casamento. Novamente, é interessante que esse acontecimento importante, no qual Jesus realiza seu primeiro milagre público, apareça apenas no Evangelho de João e não seja mencionado nos outros três. Pode haver, entretanto, uma outra interpretação para esse acontecimento, que será discutida mais à frente.
Para contrabalançar esses argumentos há as seguintes questões: se Jesus era casado, então por que não há menção específica a sua mulher ou família nos Evangelhos? Se foi casado, quem era sua esposa? Por que seus seguidores desejariam apagar qualquer vestígio relacionado a ela? Talvez eles a evitassem porque seu relacionamento com Jesus os ofendesse e poderia criar embaraços para suas missões. Se eles não eram casados, mas tinham um íntimo relacionamento sexual e espiritual, então os discípulos homens teriam preferido esquecê-lo.
Essa é precisamente a situação descrita de modo tão vívido nos Evangelhos Gnósticos, nos quais a identidade da parceira de Jesus é esclarecida. Maria Madalena era a parceira sexual de Jesus, e os discípulos homens ressentiam-se da influência dela sobre seu líder.
Quanto ao motivo para se encobrir o relacionamento de Jesus com Madalena, o que hoje pode parecer óbvio não se encaixa no contexto do primeiro século. Podemos pensar que a razão para ocultá-lo foi que a Igreja cristã sempre atribuiu à mulher, aparentemente, uma posição de subordinação e considerou a procriação como um mal necessário. No entanto, tudo indica que essa atitude contrária ao casamento é o resultado, não a causa, desse ocultamento. De fato, a Igreja nos seus primórdios, antes de ter se tornado uma instituição e estabelecido uma hierarquia, não tinha qualquer preconceito contra as mulheres, como já pudemos ver.
Que houve um ocultamento deliberado do relacionamento de Jesus e Madalena é evidente, mas a misoginia não serve de explicação. Um outro fator deve ter inspirado essa campanha contra Madalena. Provavelmente isso está vinculado, de algum modo, com seu caráter ou identidade, e/ou com a natureza de sua relação com Jesus. Em outras palavras, o problema não era o fato de que Jesus fosse casado, mas sim com quem ele se casara.
Várias vezes, no decurso de nossa investigação, deparamos com indícios de que Madalena era de algum modo considerada indecente. Agora temos que descobrir o que teria criado essa aura de perigo, que fatores outros, além da mera misoginia, estariam por trás do curioso e antigo temor a essa influente amiga de Jesus.
A verdadeira identidade de Maria Madalena, de Maria de Betânia (irmã de Lázaro) e da "pecadora sem nome" que ungiu Jesus no Evangelho de Lucas, sempre foi motivo de intensos debates. A Igreja Católica decidiu logo no início de sua existência que essas três personagens eram uma só, embora tenha mudado de opinião em 1969. A Igreja Ortodoxa do Oriente sempre tratou Maria Madalena e Maria de Betânia como figuras distintas.
Com certeza, discrepâncias e contradições obscurecem a questão, mas tal confusão é significativa por si só, já que os Evangelhos, como alguém que se sente culpado, tendem a se tornar obviamente evasivos quando tentam encobrir algo. O fato de que tais evasivas rodeiem todas as descrições relativas à Betânia, à família que vivia lá - Lázaro, Maria e Marta - e aos acontecimentos que lá tiveram lugar, torna tudo ainda mais sugestivo.
Como vimos, as descobertas de Morton Smith provam que a ausência do episódio da ressurreição de Lázaro no Evangelho de Marcos foi um ato deliberado de censura. Contudo, em sua única versão canônica sobrevivente, no Evangelho de João, esse é um dos acontecimentos mais importantes de todo o relato. Por que então os primeiros cristãos, que se deram ao trabalho de removê-lo de pelo menos um dos Evangelhos, sentiam-se tão desconfortáveis com ele? Seria, mais uma vez, porque a história incluía Marta? Ou era o lugar, Betânia, também um tanto corrupto?
O Evangelho de Lucas (10:38) descreve um episódio no qual Jesus visita a casa das duas irmãs Maria e Marta, mas não há qualquer menção a um irmão, nem o local é claramente denominado - o que é significativo. É simplesmente chamado de "uma certa aldeia" de modo tão indiferente que chega a levantar suspeitas.Afinal, o nome do local não era totalmente desconhecido para os outros cronistas. Lázaro, também, é deliberadamente omitido em Lucas. O que havia com respeito àquele lugar e à família que lá vivia? (Talvez haja uma pista no fato de João Batista ter começado seu ministério em um lugar chamado Betânia.)
É também o Evangelho de Lucas (7:36-50) que apresenta o relato mais obscuro sobre a unção dos pés de Jesus. Ele é o único entre os autores dos Evangelhos a situar os acontecimentos em Cafarnaum, no início do ministério de Jesus, e não nomeia a mulher que aparentemente interrompera a refeição de Jesus para ungir-lhe a cabeça e os pés com o precioso óleo de nardo, secando-o depois com o próprio cabelo.
O Evangelho de João (12:1-8), entretanto, é explícito nessa questão. A unção se dá na casa de Lázaro, Maria e Marta, na Betânia, e é Maria quem o unge. O relato de João (11:2) sobre a ressurreição de Lázaro também enfatiza que a última das irmãs, Maria, é quem mais tarde ungiu Jesus.
Nem Marcos (14:3-9) nem Mateus (26:6-13) denominam a mulher em questão, mas concordam que isso aconteceu em Betânia, dois dias (não os seis de João) antes da Última Ceia. Mesmo assim, de acordo com eles a unção se deu na casa de um certo Simão, o Leproso. Parece que tudo o que estava relacionado a Betânia e àquela família causava grande inquietação entre os cronistas sinópticos, a ponto de "camuflarem" o assunto, embora tenham sido obrigados a incluir a passagem. A história de Betânia os incomodava, talvez pela mesma razão que levou outros a torná-la de grande importância para o mundo herético.
Betânia também é significativa porque foi de lá que Jesus partiu para sua jornada fatal em direção a Jerusalém - para a Última Ceia e subseqüente prisão e crucificação. E embora os discípulos parecessem nada saber sobre a tragédia que se avizinhava, existem indícios de que a família de Betânia não estava de todo despreparada, e, como vimos, talvez até tenham feito alguns arranjos, como fornecer o jumento que Jesus montava quando entrou na capital.
Maria de Betânia e a mulher sem nome que ungiu Jesus eram obviamente a mesma pessoa, mas seria ela Maria Madalena? Muitos estudiosos contemporâneos acreditam que Maria Madalena e Maria de Betânia eram duas mulheres distintas. A questão, porém, permanece: por que, afinal de contas, os autores dos Evangelhos iriam querer "camuflar" o assunto?
Alguns eruditos certamente defendem a opinião de que Madalena e Maria de Betânia eram a mesma pessoa.William E. Phipps, por exemplo, acha estranho que Maria de Betânia - que com certeza era amiga íntima de Jesus – não tenha sido citada especificamente como estando presente no momento da crucificação, e que Maria Madalena de repente apareça aos pés da cruz sem nunca antes ter sido mencionada." Phipps também observa ser possível que dois epítetos distintos, "de Betânia" e "de Magdala", sejam aplicados a uma mesma pessoa, dependendo do contexto. Isso se tornaria ainda mais provável se os autores estivessem deliberadamente tentando obscurecer a questão.
Entretanto, os eruditos, de modo geral, não chegam nem mesmo a considerar a possibilidade de que os censores dos autores dos Evangelhos deliberadamente deturparam certos aspectos da história que escolheram contar. (Alguns, principalmente Hugh Schonfield, admitem existir algo sobre o grupo de Betânia que os autores dos Evangelhos propositadamente nos negaram, ou algo sobre o assunto que os autores simplesmente não entendiam ou não sabiam.) Uma vez admitida essa "camuflagem", passa a ser possível que Maria de Betânia e Maria Madalena fossem a mesma pessoa.
Esta investigação começou com o exame da tradição secreta, exemplificada por Leonardo da Vinci e sua suposta irmandade, o Monastério de Sion. Como vimos, a primeira vez que os leitores de língua inglesa ouviram falar sobre o Monastério foi no The Holy Blood and The Holy Grail, e esse livro inequivocamente argumenta que Maria Madalena e Maria de Betânia eram a mesma pessoa. É significativo que a versão revisada de 1996 apresente um material novo, incluindo o "documento Montgomery" que, como vimos, parece reforçar as bases em que se firma o livro. Especificamente, nesse contexto, o documento declara que Jesus era casado com "Miriam de Betânia", que foi para a França e teve uma filha. Supõe-se claramente que se tratava de Maria Madalena, embora o ponto importante aqui seja que os defensores do Monastério acreditam que isso é verdade. E deve-se lembrar que todos os relatos tradicionais da ida de Maria Madalena para a França - como o The Golden Legend - partem do pressuposto de que ela e Maria de Betânia são a mesma pessoa. Existe, porém, alguma evidência que apóie essa afirmação?
Há uma pista em Lucas, que, após descrever a unção de Jesus pela "pecadora sem nome", imediatamente apresenta Madalena pela primeira vez (8:1-3). Parece que, ao menos inconscientemente, para Lucas a associação era por demais forte para ser ignorada.
Significativamente, o próprio Jesus vincula não só o ato da unção como também a pessoa que o unge ao seu sepultamento que se avizinha, como, por exemplo, em Marcos (14:8): "Ela fez o que podia: embalsamou com antecipação o meu corpo para a sepultura." É uma ligação implícita entre a mulher de Betânia e Maria Madalena, pois é esta última que vai à tumba para ungir O corpo de Jesus para o enterro alguns dias depois. Tanto a unção de Jesus vivo como a futura unção de seu defunto são atos rituais de grande significado, que no mínimo vinculam as duas mulheres. Em todo caso, é de extrema importância que a pessoa que unge Jesus - preparando-o para enfrentar seu verdadeiro destino - seja uma mulher.
Embora não seja impossível que elas fossem a mesma, é melhor manter a mente aberta com respeito a essa questão, enquanto pesquisamos mais profundamente o relato bíblico sobre o papel e as ações de Madalena e Maria de Betânia.
Significativamente, a idéia persistente de que Maria Madalena era uma prostituta vem da associação (ou confusão) tradicional de sua figura com Maria de Betânia, que é descrita como "uma pecadora". É claro, se Maria de Betânia era uma prostituta e também a mesma pessoa que Maria Madalena, então isso contribuiria muito para explicar a extrema cautela dos autores dos Evangelhos - e a deliberada obscuridade - em relação à última. Precisamos examinar o caráter de Maria de Betânia para ver que luz pode ser lançada sobre o assunto.
Nos Evangelhos Sinópticos a mulher que unge Jesus não é denominada, embora seja assinalado que ela é uma pecadora; no Evangelho de João, porém, ela é explicitamente identificada como Maria de Betânia e sua condição moral não é mencionada. Isso por si só parece um tanto suspeito.
Em Lucas, a mulher que unge Jesus é descrita como "uma mulher que era pecadora na cidade", embora o original grego para "pecadora" harmartolos, que significa alguém que violou a lei e se tomou um transgressor - não necessariamente implique prostituição nesse contexto. A outra referência a ela associada, de usar os cabelos soltos - coisa que as mulheres de respeito não faziam -, sugere algum tipo de pecado sexual, pelo menos aos olhos dos autores dos Evangelhos."
No contexto da cultura judaica da época, havia algo desabonador em Maria de Betânia, o que não significa necessariamente que ela era uma prostituta comum exercendo seu oficio nas ruas. (O óleo de nardo, que vem de uma rara e apreciada planta da índia, era tão proibitivamente caro que estaria totalmente fora dos recursos de uma prostituta de rua. Segundo William E. Phipps, o óleo de nardo custaria a ela o equivalente ao salário obtido em um ano de trabalho na agricultura.) E mesmo que Maria fosse uma rica "madame" dona de bordel, parece improvável que ela morasse com seus irmãos Lázaro e Marta - nenhum dos quais, aparentemente, tinha má reputação, sendo claramente grandes amigos de Jesus, que se hospedava em sua casa. Então qual seria a verdadeira natureza de seu "pecado"?
Harmartolos era um termo emprestado da arte do arco e flecha, significando errar o alvo: nesse contexto significa simplesmente alguém que não segue a lei judaica ou não observa os rituais, ou porque não manteve as práticas descritas, ou porque não é de modo algum judeu. Se a mulher não era, de fato, judia, então isso pode explicar a atitude dos autores dos Evangelhos. Entretanto, é o detalhe de seus cabelos soltos e a atitude dos discípulos com respeito a ela que dão margem para que se suspeite de alguma transgressão relacionada ao sexo.
É essa impressão de repugnância que, intencionalmente ou não, depreciou o verdadeiro significado da unção de Jesus. Há um outro ponto importante sobre esse ato que tem atraído muito pouca atenção, mas no qual o cristianismo realmente se baseia. É de conhecimento geral que o termo "Cristo” vem do grego Christos, que por sua vez é a tradução do hebreu "Messias”. Porém, ao contrário do que amplamente se acredita, o termo não encerra nenhuma conotação de divindade: Christos significa simplesmente “O Ungido”. (Com base nessa interpretação, qualquer funcionário oficial que fosse ungido seria um “Cristo”, desde Pôncio Pilatos até a rainha da Inglaterra.) A idéia de um Cristo divino foi uma interpretação posterior dos cristãos: esperava-se que o Messias judeu fosse simplesmente um grande líder político e militar, embora escolhido por Deus. Naquela época, o termo “Messias” ou “Cristo”, quando aplicado a Jesus, significaria apenas “ungido”.
Há, é claro, apenas uma única unção de Jesus mencionada nos Evangelhos. Embora alguns argumentem que sua “unção” foi de fato o batismo pelas mãos de João, se assim fosse toda a multidão que se banhou no Jordão também seria chamada de "Cristo”. Permanece embaraçoso o fato de que a pessoa que "cristianizou” Jesus foi uma mulher.
Ironicamente, está registrado que Jesus fez o seguinte comentário em sua unção (Marcos 14:9):
Em verdade vos digo, onde quer que for pregado este evangelho por todo o mundo, será também contado para sua memória o que ela fez.
É curioso que a Igreja, que tradicionalmente afirma que a mulher que fez a unção foi a Santa Maria Madalena, tenha ignorado essa injunção. Considerando o pouco caso com que Madalena geralmente é tratada nos púlpitos de todo o mundo, parece que as palavras de Jesus são, como tudo o mais no Novo Testamento, objeto de um inexorável processo de seletividade. Nesse caso as palavras de Jesus são quase totalmente ignoradas. E mesmo nas raras ocasiões em que se dá a elas a importância que merecem por esse episódio, nada se diz sobre o significado dele.
Apenas duas pessoas são citadas no Novo Testamento como tendo oficiado rituais importantes na vida de Jesus: João, que o batizou no início de seu ministério, e Maria de Betânia, que o ungiu em seu final. Contudo, como vimos, ambos foram marginalizados pelos autores evangélicos - é como se somente tivessem sido incluídos porque aquilo que fizeram era importante demais para ser completamente ignorado. E há uma outra grande razão para isso: o batismo e a unção implicam autoridade por parte daquele que oficia. Pois uma vez que um batizador e um ungidor conferem autoridade a alguém - do mesmo modo que o arcebispo de Canterbury conferiu condição real à rainha Elizabeth II, em 1953 -, eles próprios devem ter autoridade para fazê-lo.
Examinaremos a questão da autoridade de João mais tarde, mas considere o fato curioso de que o episódio da unção foi efetivamente registrado, o que não teria acontecido se tivesse sido um episódio frívolo ou insignificante. Contudo, segundo nos contam, os discípulos, especialmente Judas, condenaram Maria por usar o raro e caríssimo óleo de nardo para ungir Jesus, alegando que o óleo poderia ter sido vendido para levantar dinheiro para os pobres. Jesus responde que sempre existirão pobres, mas ele não estará ali para sempre (a fim de ser honrado). Essa reprovação de Jesus - além de depor contra a idéia de que ele era uma espécie de proto-marxista - não apenas justifica a ação de Maria, como também sugere fortemente que apenas ele e ela realmente compreendiam seu significado. Os discípulos, como sempre, pareciam ter dificuldades para entender os aspectos mais sutis desse ritual extremamente significativo, e eram francamente hostis às ações de Maria, embora o próprio Jesus tivesse o cuidado de reforçar a autoridade dela. Esse episódio teve um outro significado importante: marcou o momento em que Judas se tornou o traidor - imediatamente depois ele vende Jesus aos sacerdotes.
Maria de Betânia "cristianizou" Jesus com o óleo de nardo, um ungüento que, muito provavelmente, tinha sido guardado para essa ocasião especifica e estava associado com os rituais de sepultamento. O próprio Jesus diz, ao comentar sobre a unção (Marcos 14:8): "...[ela] embalsamou com antecipação o meu corpo para a sepultura." Para ele, pelo menos, a intenção da unção era servir de ritual.
É evidente que a unção teve um significado profundo, mas qual foi exatamente o seu propósito? E por que, naquela sociedade e naquele tempo, foi realizada por uma mulher? Dado o gênero e a reputação (mesmo que imerecida) da mulher que o ungiu, a cerimônia dificilmente seria típica da prática judaica. Talvez haja uma pista para a verdadeira natureza da unção nos "documentos Montgomery".
Como vimos, esse relato fala do casamento de Jesus com Miriam de Betânia, que é descrita como a "sacerdotisa de um culto feminino" - uma tradição de veneração às deusas. Se for verdadeiro, isso pode explicar por que a unção parecia tão estranha aos outros discípulos, embora a tolerância de Jesus permaneça inexplicada. E se ela era realmente uma sacerdotisa pagã, isso explicaria por que os discípulos homens achavam que ela tinha uma moral e um caráter duvidosos.
Se Maria de Betânia foi realmente uma sacerdotisa pagã, por que ungiu Jesus? Indo mais direto ao ponto, por que ele lhe permitiu fazer isso? Existe algum paralelo entre esse ritual e aqueles comumente associados com o paganismo da época? De fato, há um antigo ritual que é de extrema importância: a unção do rei sagrado. A idéia por trás disso era a de que o verdadeiro rei ou sacerdote só poderia receber todo o seu poder divino através da autoridade da suprema sacerdotisa. Isso tradicionalmente tomou a forma do hieros gamos, ou casamento sagrado: o rei-sacerdote unindo-se com a rainhasacerdotisa. Era através da união sexual com ela que ele verdadeiramente se tornava o rei reconhecido. Sem ela, ele não era nada.
Nada há na vida moderna do Ocidente algo que se aproxime de tal conceito ou prática, e é difícil para as pessoas de hoje entender a noção do hieros gamos. Fora do universo íntimo dos casais, individualmente considerados, não temos nenhum conceito de sexualidade sagrada. Contudo, não se trata meramente de sexo ou erotismo, por mais elevados que supostamente sejam: no matrimônio sagrado, o homem e a mulher realmente tornam-se deuses. A suprema sacerdotisa torna-se a própria deusa, que então concede a benção maior da regeneração - assim como na alquimia - ao homem, que corporifica o deus. Acreditava-se que a união dos dois impregnava ambos e o mundo ao redor com um bálsamo regenerativo, evocando o impulso criativo do nascimento do planeta. "
O hieros gamos era a expressão final daquilo que se denomina "prostituição no templo", onde o homem visitava uma sacerdotisa para receber a gnose - para experimentar o divino por si mesmo através do ato de amor carnal. Significativamente, a palavra original para sacerdotisa é hierodule, que significa "serva sagrada"; a palavra "prostituta", com todo o juízo moral que ela encerra, foi impingida por uma tradução da era vitoriana. Mais ainda, a serva desse templo, ao contrário da prostituta secular, tem total controle da situação e do homem que a visita, e ambos são beneficiados com poderes físicos, espirituais e mágicos. O corpo da sacerdotisa torna-se, literal e metaforicamente, um portal para se chegar até os deuses - o que é praticamente inconcebível para os amantes ocidentais de hoje.
Claro que nada poderia estar mais longe da atitude da Igreja, mesmo da Igreja moderna, no que tange ao sexo e à mulher. Pois não só a chamada prostituição no templo proporcionava iluminação espiritual - um processo conhecido como horasis -, como sem o "conhecimento" carnal da hierodule o homem permaneceria espiritualmente insatisfeito. Por si mesmo ele tinha pouca esperança de alcançar o êxtase proporcionado pelo contato com Deus ou deuses, mas as mulheres não necessitavam de nenhuma cerimônia; para os pagãos, as mulheres estavam naturalmente em contato com o Divino.
É possível que a "unção" realizada em Jesus simbolizasse a penetração sexual. Embora não seja necessário pensar nesses termos para compreender a solenidade do ritual, existem associações inevitáveis com os rituais antigos nos quais as sacerdotisas, que representavam as deusas, eram fisicamente preparadas para "receber" o homem que fora escolhido para simbolizar o rei sagrado, ou deus salvador. Todas as escolas de mistério de Osíris, Tamus, Dioniso, Atis etc. incluem um ritual - desempenhado por substitutos humanos no qual o deus era ungido pela deusa antes de sua morte simbólica ou verdadeira, o que tornaria a terra fértil mais uma vez. Segundo a tradição, três dias após, graças à mágica intervenção da sacerdotisa/deusa, ele renascia e a nação podia então respirar aliviada até o próximo ano. (A deusa na encenação do mistério dizia: "Eles levaram meu Senhor e não sei onde encontrá-lo," praticamente as mesmas palavras atribuídas a Maria Madalena no jardim. Discutiremos isso em detalhes mais à frente.)
Pistas relacionadas com o real significado da unção de Jesus podem ser encontradas no Antigo Testamento, no Cântico dos Cânticos (1: 12), onde o "Amado" diz: "Estando o rei sentado à sua mesa, o meu nardo exalou o seu aroma por tudo." Devemos lembrar que o próprio Jesus associa sua unção com seu sepultamento, assim o verso que se segue assume um outro significado:"O meu amado é para mim como um ramalhete de mirra: ele irá repousar toda a noite entre os meus seios."
Isso é uma óbvia ligação entre a unção de Jesus e o Cântico dos Cânticos. Muitas autoridades acreditam que, na verdade, o Cântico dos Cânticos era a liturgia do ritual sagrado do casamento, assinalando suas muitas semelhanças com liturgias do Egito e de outros países do Oriente Médio.
Há uma em particular que tem uma ressonância impressionante, como nos diz Margaret Starbird:
Versos idênticos e equivalentes àqueles do Cântico dos Cânticos são encontrados no poema litúrgico do culto à deusa egípcia Ísis, irmã-noiva do mutilado... Osíris.
A deusa/sacerdotisa une-se com o deus/sacerdote no sagrado matrimônio por razões complexas. Superficialmente é um ritual da fertilidade, para assegurar a fecundidade pessoal e nacional, para garantir o futuro do povo e de sua terra. Mas é também através do êxtase e da intimidade do rito sexual que a deusa/sacerdotisa confere sabedoria a seu parceiro. A analista junguiana Nancy Qualls-Corbett, no seu livro The Sacred Prostitute (1988), coloca grande ênfase na ligação entre a puta sagrada e o Princípio Feminino simbolizado por Sofia (Sabedoria). Como vimos, Sofia repete-se recorrentemente em nossas investigações - ela era particularmente venerada pelos templários - e está fortemente associada a Madalena e Ísis.
A unção de Jesus foi um ritual pagão: a mulher que o executou, Maria de Betânia, era uma sacerdotisa. Levando-se em conta esse novo cenário, é bem mais do que provável que seu papel no círculo íntimo de Jesus fosse o de iniciadora sexual. Recordemos, porém, que tanto os hereges como a Igreja Católica há muito acreditam que Maria de Betânia e Maria Madalena eram a mesma pessoa: nessa figura da iniciadora sexual finalmente encontramos a razão que faltava para a confusão acerca do verdadeiro papel e significado de Madalena na vida de Jesus. Se ela realmente era uma hierodule operando no mundo patriarcal do judaísmo, seria inevitavelmente considerada como pária moral. No entanto, enquanto esteve junto a Jesus ela era protegida, se não de outras coisas, pelo menos dos efeitos do ultraje à sua virtude, como os vários entreveros com Simão Pedro (conforme os Evangelhos Gnósticos) claramente o demonstram.
O Monastério de Sion, como já observamos, é devotado à deusa - na forma de Madona Negra, de Maria Madalena ou da própria Isis. Eles claramente associam Maria Madalena com Isis - associação que é fundamental à sua própria raison d'être, embora à primeira vista isso cause certa perplexidade. Entretanto, está claro que vêem Maria Madalena como uma sacerdotisa pagã - o que, no mínimo, é um outro paralelo entre ela e Maria de Betânia.
O papel de Maria Madalena como sacerdotisa pagã é reconhecido por Baigent, Leigh e Lincoln; porém, eles não parecem considerar que as implicações disso cheguem a merecer maior atenção. Por exemplo, enquanto discutem se a Madalena estava associada ao culto às deusas, concluem que "anteriormente à sua associação com Jesus, a Madalena poderia muito bem ter estado ligada a tal culto". E então mudam de assunto. No entanto, a frase crucial aqui é "anteriormente à sua associação com Jesus", pressupondo que ele a convertera e reproduzindo a visão tradicional de que ela se regenerou através de sua relação com ele. Essa visão, todavia, é um tanto ingênua, embora desafiá-la signifique evocar um outro cenário profundamente inquietante.
Qualls-Corbett também cita a conexão entre a Puta Sagrada, Sofia e a Madona Negra, realçando assim os vínculos que descrevemos na Parte I". Essa personificação multifacetada do Princípio Feminino lança alguma luz sobre o grande, e zelosamente guardado, segredo erótico da tradição oculta ocidental. Pois Sofia é a Puta, que também é a "Ternamente Amada" do casamento sagrado, e que é Maria Madalena, Madona Negra e Isis. A sexualidade sagrada implícita na Grande Obra dos alquimistas é uma continuação direta dessa antiga tradição, na qual o rito sexual confere iluminação espiritual e mesmo transformação física. É após essa suprema experiência com a deusa/sacerdotisa que o deus/sacerdote modifica-se a tal ponto que não pode mais ser reconhecido e "ressuscita" para uma nova vida.
Significativamente, como assinalam Nancy Qualls-Cobertt e outros comentadores recentes, a descrição de Maria Madalena nos Evangelhos Gnósticos é a de uma iluminatrix e iluminadora - Maria Lúcifer, a que traz luz, a que concede iluminação através do sexo sagrado. E, tomado em conjunto com nossas conclusões sobre Maria de Betânia, parece que ela e Maria Madalena realmente eram a mesma mulher.
Esse cenário também reforça a idéia de que Maria era a mulher de Jesus, embora isso essencialmente dê um novo sentido à palavra. Ela era sua parceira num casamento sagrado, que não era necessariamente um encontro amoroso. Como já vimos, o Cântico dos Cânticos é uma liturgia do casamento sagrado, e isso sempre esteve relacionado com Maria Madalena.
A sexualidade sagrada - um anátema para a Igreja de Roma - encontra expressão no conceito de casamento sagrado e "prostituição sagrada' nos antigos sistemas orientais do taoísmo e do tantrismo e na alquimia.
Como Marvin H. Pope diz em seu exaustivo estudo sobre o Cântico dos Cânticos (1977):
Os hinos tântricos às Deusas fornecem uns dos paralelos mais instigantes com o Cânticos dos Cânticos.
E conforme expõe Peter Redgrove no seu livro The Black Goddess (1989), ao discutir as artes sexuais do taoísmo:
É interessante comparar isso com as práticas religiosas sexuais do Oriente Médio e com a imagem delas que nos foi legada. Mari-Ishtar, a Grande Meretriz, unge seu consorte Tamus (com quem Jesus era identificado), fazendo dele um Cristo. E o faz para prepará-lo para sua descida ao mundo inferior, do qual ele retornaria por ordem dela. Ela, ou sua sacerdotisa, era chamada de Grande Meretriz porque esse era um rito sexual de horasis, do orgasmo de corpo inteiro que levaria o consorte ao continuum visionário cognoscível. Era um rito de passagem, do qual ele retornaria transformado. No mesmo sentido Jesus diz que Maria Madalena o ungiu para seu sepultamento. Somente mulheres podiam desempenhar tais rituais em nome da deusa, e é por essa razão que nenhum homem compareceu à sua tumba, apenas Maria Madalena e as outras mulheres. Um símbolo fundamental de Madalena na arte cristã era o frasco de óleo sagrado - o sinal exterior do batismo interior experimentado pelo taoísta..."
Existe ainda um outro aspecto de grande importância acerca do frasco de óleo com que Madalena ungiu Jesus. Como já vimos, os Evangelhos nos dizem que o óleo era de nardo, um ungüento excepcionalmente caro. A razão de seu alto preço era o fato de ser trazido da índia, lar da antiga arte sexual do tantra. E na tradição do tantra, perfumes e óleos diferentes são designados para regiões especificas do corpo: óleo de nardo era para os cabelos e os pés...
No Épico de Gilgamesh, diz-se dos reis sacrificados: "A meretriz que vos ungiu com o fragrante óleo, por vós agora chora". Uma frase semelhante era utilizada nos mistérios da morte do deus Tamus, cujo culto predominava em Jerusalém na época de Jesus." E, significativamente, os "sete demônios" que Jesus supostamente expulsou de Madalena podem ser vistos como os sete espíritos Maskim, dos sumérios e acadianos, que governavam as sete esferas sagradas e que haviam nascido da deusa Mari.
Na tradição do matrimônio sagrado, era a noiva do rei sacrificial - a Alta Sacerdotisa - quem escolhia o momento de sua morte, quem realizava seu funeral e com sua magia o trazia de volta do mundo inferior para gozar uma nova vida. Na maioria dos casos, é claro, essa "ressurreição" era puramente simbólica, sendo vista como o renovar da vida representado pela primavera - ou, no caso de Osíris, pela cheia anual do vale do Nilo que renovava a fertilidade da terra.
Podemos, portanto, ver a unção de Maria Madalena como um anúncio de que o momento do sacrifício de Jesus havia chegado e, também, como um ritual reservado ao rei sagrado, que ela, como sacerdotisa, tinha autoridade para realizar. Que esse papel é diametralmente em oposição ao que a Igreja tradicionalmente atribuiu a ela já não deveria mais ser motivo de surpresa.
Em nossa opinião, a Igreja Católica jamais quis que seus membros realmente soubessem da verdadeira relação entre Jesus e Maria, razão pela qual os Evangelhos Gnósticos não foram incluídos no Novo Testamento e os cristão nem sequer tomaram conhecimento da existência deles. O Concílio de Nicéia, ao rejeitar grande parte dos Evangelhos Gnósticos e votar pela inclusão apenas de Mateus, Marcos, Lucas e João no Novo Testamento, não tinha qualquer mandado divino para exercer tal ato de censura. Agiram assim por auto-preservação, pois naquela época, século IV, o poder de Madalena e de seus seguidores já havia se espalhado a tal ponto que os patriarcas da Igreja não tinham como detê-lo.
De acordo com esse material censurado - que foi deliberadamente suprimido para evitar que os fatos verdadeiros fossem conhecidos - Jesus deu a Madalena o título de "Apóstolo dos Apóstolos" e "Mulher que Conhecia o Todo". Ele disse que ela seria elevada acima de todos os outros discípulos e governaria o Reino da Luz que estava por vir. Como já vimos, ele também a chamava de Maria Lúcifer, "Maria, aquela que traz a luz" - e afirma-se que ele trouxera Lázaro de volta dentre os mortos em razão do amor que por ela sentia, não havendo nada que não fizesse por ela, nada que lhe recusasse. O Evangelho Gnóstico de Felipe relata que os outros discípulos não gostavam dela, e que Pedro, em particular, tentava argumentar sobre a condição dela com Jesus, chegando mesmo a perguntar-lhe, ingenuamente, por que ele preferia ela aos outros discípulos e por que sempre a beijava na boca! No Evangelho Gnóstico de Maria, a Madalena diz que Pedro odiava não só a ela como "toda a raça das mulheres", e, no Evangelho de Tomé, Pedro diz: "Deixe que Maria se vá, pois as mulheres não merecem viver" - preliminares da severa batalha entre a Igreja de Roma, que foi fundada por Pedro, e o movimento herético que pertencia a Maria. (É instrutivo relembrar que isso começou como um rusga pessoal entre dois indivíduos, e um deles era a consorte de Jesus.)
Significativamente, o Evangelho Gnóstico de Felipe (que se refere especificamente à Madalena como parceira sexual de Jesus) está repleto de alusões a uniões entre homens e mulheres, entre noivo e noiva. A iluminação final é simbolizada pelos frutos da união do noivo com a noiva: aqui Jesus é o noivo, e sua noiva é Sofia, e Jesus engravidando-a é o ápice da gnose. (É interessante notar que mesmo nos Evangelhos canônicos Jesus freqüentemente refere-se a si mesmo como "o Noivo”.) O Evangelho de Felipe também estabelece uma clara associação entre Maria Madalena e Sofia."
Esse Evangelho Gnóstico lista cinco rituais iniciatórios ou sacramentos: batismo, crisma (unção), eucaristia, redenção e, o mais elevado de todos, "a câmara nupcial":
A crisma é superior ao batismo... e Cristo é (assim) chamado por causa da crisma... Ele que é ungido possui o Todo. Ele possui a ressurreição, a luz, a Cruz, o Espírito Santo. O Pai deu-lhe este na câmara nupcial.
Se o ritual do sacramento da crisma era superior ao do batismo, então isso sugere que a autoridade de Maria era realmente maior que a de João Batista. Ainda mais significativo, entretanto, o Evangelho de Felipe deixa claro que todos os gnósticos que seguiam aquele sistema, e não apenas Jesus, tornavam-se "Cristos" ao serem ungidos. E o maior dos sacramentos era o da "câmara nupcial", que nunca é explicado e permanece um mistério para os historiadores. Porém, sob a luz de nossas investigações, pode-se fazer uma suposição astuta: certamente as palavras da passagem contêm uma pista sobre a verdadeira natureza da relação entre Jesus e Maria. Como já vimos, a última também era conhecida nos Evangelhos Gnósticos como "a mulher que conhecia o Todo", e aqui nos dizem que "ele que é ungido possui o Todo". E o Evangelho Gnóstico de Felipe declara de modo abrupto: "Compreenda o grande poder que possui o intercurso imaculado".
A escritura gnóstica do século III conhecida como Pistis Sophia apresenta o que se afirmou serem os ensinamentos de Jesus, doze anos após sua ressurreição. Madalena é retratada no papel arquetípico da catequista, questionando-o a evocar sua sabedoria - exatamente como a Shakti ou deusa oriental ritualmente questiona seu consorte divino. É digno de nota que no Pistis Sophia Jesus utilize com Maria os mesmos termos que se utilizavam para aquelas deusas, 'Ternamente Amada". Essas são também as palavras que os parceiros usam entre si no matrimônio sagrado.
A intimidade de Jesus e Maria encerra outra implicação profunda. A comparação entre o relacionamento de ambos com o de Jesus e seus discípulos deixa pouca dúvida quanto a quem privava realmente de suas idéias, pensamentos e segredos. Os discípulos homens são com freqüência retratados
como um tanto "lerdos". Muitas vezes "não entendiam o que ele queria dizer" - uma qualidade nada inspiradora nos homens que um dia, aparentemente, iriam fundar a Igreja de seu líder. Na verdade, os Atos dos Apóstolos falam do fogo celeste do Pentecostes que conferiu certa sabedoria e poder aos discípulos, mas os Evangelhos Gnósticos falam de um discípulo que não necessitava dessa intervenção divina. De acordo com o material censurado, foi Madalena quem reuniu os desolados discípulos após a crucificação e, graças apenas à força de suas palavras inspiradoras, estimulou-os a levar a causa adiante quando já pareciam prestes a desistir. Está certo que ela vira Jesus ressuscitado com seus próprios olhos, porém, mais uma vez, deparamos com a curiosa sensação de que faltavam a eles a motivação, a fé e a coragem de Madalena.
Poderia ser que os Doze, na verdade, não fizessem parte do círculo interno dos seguidores de Jesus, que simplesmente, na melhor das hipóteses, fossem os mais leais de seus devotos não iniciados? Olhando em retrospecto, a ignorância deles era chocante. Por exemplo, embora a morte e a ressurreição de Jesus fossem a quintessência de sua missão, os homens não esperavam que acontecessem: "Ainda não entendiam a escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos".
Foi Maria Madalena e suas seguidoras femininas que foram até a tumba. Talvez suas palavras ao "guardião" - na realidade Jesus ressurrecto -, de que seu "Senhor" fora levado e que ela "não sabia onde o haviam colocado", poderiam significar que ela também ignorava, assim como os homens, o que estava acontecendo. Mas existem razões que nos compelem a ver suas palavras no contexto de que ela partilhava dos mistérios secretos - talvez até como sacerdotisa. Maria Madalena foi com toda probabilidade consorte de Jesus e a primeira Apóstola, e parece provável que seu papel abrangesse outro significado ritual, mais pagão e mais antigo.
Pressupõem-se que os homens não acorreram à tumba de Jesus porque isso não era o tipo de coisa que os homens fariam naqueles dias. Porém, a julgar pelos relatos gnósticos sobre a estarrecedora apatia dos discípulos após a crucificação, o costume por si só não poderia explicar sua ausência. Na tradição dos mistérios, apenas as sacerdotisas proclamavam o clímax do sacrifício do rei - sua miraculosa ressurreição.
Mesmo que as aparentes semelhanças entre a unção, morte e ressurreição de Jesus com as tradições pagãs da época sejam aceitas, ainda resta saber por que um pregador judeu teria se envolvido em tais ocorrências. Pois embora Maria Madalena de fato pareça ter pertencido a algum tipo de culto às prostitutas sagradas, e sua influência sobre seu consorte fosse, sem sombra de dúvida, grande, que possível razão teria tido Jesus para voltar as costas a séculos da arraigada tradição judaica? Como poderia, dentre todas as pessoas, ter participado de um ritual pagão?
Essa questão confronta-nos com uma possibilidade até aqui inimaginável. Como já vimos, a realidade sobre Jesus e sua missão pode ser muito diferente daquela ensinada pela Igreja. Se por um momento suspendermos a descrença e considerarmos a hipótese dada acima como verdadeira, isso significaria criar um cenário completamente novo. E se Jesus fosse o parceiro de um casamento sagrado e, portanto, participasse de boa vontade de ritos sexuais pagãos; e se Maria Madalena fosse realmente a suprema sacerdotisa de um culto às deusas e no mínimo igual a Jesus, espiritualmente falando; e se Pedro e outros discípulos não fossem, de fato, parte do círculo interno do movimento? E isso leva a uma outra questão: tendo em vista esse quadro totalmente diferente, mesmo que hipotético, que tipo de homem estaria realmente no centro de tudo isso? Quem era realmente Jesus?