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9.11.2017

 CAPÍTULO XIII

Filho da Deusa

Como vimos, os estudos históricos modernos ofereceram uma série de novas descobertas sobre as origens do cristianismo que chamam à reflexão. No entanto, o abismo entre o que os estudiosos da Bíblia sabem sobre a religião e o que os cristãos conhecem, continua a crescer. Burton L. Mack, catedrático de Estudos do Novo Testamento da Escola de Teologia de Claremont, Califórnia, recentemente lamentou a "espantosa falta de conhecimentos básicos, entre grande parte dos cristãos, sobre a origem do Novo Testamento”.
O fato de que a análise do Novo Testamento, tal como a conhecemos, só tenha começado no século XIX, reflete a quase supersticiosa relutância em examinar os textos originais, em decorrência da longa proibição da Igreja de que a Bíblia fosse lida pelo o público em geral. Durante séculos, somente os padres liam as Escrituras - de fato, na maioria dos casos, somente eles podiam aprender a ler e escrever. A ascensão do protestantismo quebrou parcialmente essa exclusividade, propiciando que um número maior de pes­soas tivesse acesso aos textos considerados sagrados. Entretanto, todas as formas extremas do movimento protestante - desde o puritanismo ao que é hoje conhecido como fundamentalismo - enfatizaram a inspiração divina por trás das palavras do Novo Testamento, proibindo assim qualquer insinuação de que talvez não fossem a verdade literal. Nos dias de hoje, milhões de cristãos ignoram as evidências que sugerem ser o Novo Testamento uma mistura de mito, pura invenção, versões deturpadas de relatos de testemunhas e materi­al tomado de outras tradições. No entanto, ao evitar tais evidências, eles não apenas deixam de entender, como também mantêm um sistema de crença que está cada vez mais vulnerável à crítica.
Quando os estudiosos do século XIX começaram a empregar os mes­mos critérios comumente utilizados para analisar outros textos históricos, os resultados foram extremamente reveladores. Um dos primeiros desdobramen­tos a surgir foi a assertiva de que Jesus na verdade nunca existiu, e que os Evangelhos eram simplesmente uma coletânea de material mitológico e metafórico. Atualmente, poucos estudiosos do Novo Testamento concordam com essa visão, embora, como veremos, ela ainda tenha seus defensores. O argumento a favor da existência de um Jesus histórico é bastante sólido, mas será instrutivo examinar as razões daqueles que duvidam disso, afirmando que Jesus foi uma total invenção dos primeiros cristãos.
Aqueles que advogam essa visão dizem que, fora os próprios Evange­lhos, não existe nenhuma evidência independente de que Jesus tenha real­mente existido. (Isso por si só é um choque para muitos cristãos, pois supõem que, sendo ele tão fundamental ao seu próprio mundo, deve ter sido muito famoso na época: na verdade, ele não é mencionado em nenhum texto seu contemporâneo.) Os outros livros do Novo Testamento - por exemplo, as Epístolas de Paulo - partem do pressuposto da existência de Jesus mas não oferecem nenhuma prova sólida disso. Paulo, cujas cartas são os mais antigos textos cristãos de que se tem notícia, não fornece nenhum detalhe biográfico sobre Jesus a não ser aqueles que se relacionam com a crucificação - nada fala sobre seus pais, seu nascimento ou o passado de sua vida. Mas Paulo, assim como os outros autores do Novo Testamento, está mais preocupado com a teologia, em manter vivo o movimento de Jesus e explicar seus ensina­mentos, do que com a biografia de seu fundador.
Muitos historiadores do século XIX preocupavam-se com a falta de reg­istros contemporâneos sobre Jesus. Como vimos, nenhum cronista do pri­meiro século faz qualquer menção a ele. E como escreveu Bamber Gascoigne: "Durante os primeiros cinqüenta anos do que hoje chamamos de era cristã, não há uma única palavra sobre Jesus ou seus seguidores."'
O escritor romano Tácito (em sua obra Anais, c. 115) registra o crescimento do cristianismo - que ele chama de uma "superstição perigosa" – em Jerusalém e em Roma e menciona de passagem a execução de seu fundador, mas não dá nenhum detalhe e se refere a ele simplesmente pelo título de "Cristo".
Suetônio, em sua obra As vidas de César (c.120), refere-se a agitações entre os judeus, no ano de 49, instigadas por"Chrestus". Isso com freqüência é citado como evidência de uma ramificação romana do cristianismo, mas não é necessariamente assim. Muitos se proclamaram Messias entre os ju­deus daquela época, e todos poderiam ser chamados, em grego, de "Cristo"; Suetônio escreve como se aquele, em particular, estivesse pessoalmente e ativamente incitando a rebelião judia em Roma na época.
Outro romano notável que teve contato com os cristãos nos primeiros anos do século I foi Plínio, o Jovem, que não dá nenhuma informação sobre eles, além de dizer que seu movimento foi fundado por "Cristo". O que é particularmente interessante nesse relato, porém, é o fato de mostrar que esse Cristo já era considerado como um deus.
Esses autores eram romanos, e, como a Palestina era para o império um lugar atrasado, não é de surpreender que negligenciassem Jesus e os primei­ros dias da Igreja Cristã. (Além disso, rebeldes e criminosos não recebiam a atenção que hoje recebem em nossa época de celebridades. Mesmo a rebelião do ex-escravo Espártaco recebeu pouco espaço dos cronistas da época.) Entretanto, seria de imaginar que a vida e o ministério de Jesus tivessem sido citados nas obras de Flávio Josefo (38-c.100), um judeu que trocou de lado na revolta dos judeus e escreveu dois livros contando a história do período. Sua obra Antigüidades dos judeus (escrita por volta do ano de 93) mencio­na, de fato, outros personagens da história dos Evangelhos, principalmente João Batista e Pôncio Pilatos. Há uma referência a Jesus, mas infelizmente já há muito se reconheceu que esta foi acrescentada à obra por um autor cristão muito tempo depois - provavelmente no início do século IV - precisamente a fim de preencher o silêncio constrangedor em torno desse assunto. Na verdade, a referência a Jesus é por demais reverente, a ponto de comentado­res terem perguntado por que o autor nunca se converteu ao cristianismo, já que falava de Jesus em termos tão glorificantes! A questão verdadeira, contu­do, era saber se essa inserção apenas cobria a ausência de uma referência, ou se substituía uma outra que era menos lisonjeira sobre Jesus e seu movimen­to. Não podemos estar certos sobre nenhuma das hipóteses, embora o peso da evidência indique que se trata de completa invenção; a passagem nem mesmo está escrita no estilo de Josefo e se encaixa muito mal no fluxo da história. E mais, o escritor cristão Orígenes, do final do século III, não parece estar ciente de nenhuma referência a Jesus na obra de Josefo (Embora Eusé­bio cite a referência quando escreve no século seguinte.) Entretanto, a refer­ência de Josefo ao pregador João Batista e à sua execução por Herodes Anti­pas não se questiona.
É claro que a falta de referências a Jesus fora dos Evangelhos não signi­fica que ele nunca tenha existido. Pode significar apenas que seu impacto na época não foi grande o suficiente. Afinal, houve muitos outros pretensos Mes­sias naquele tempo que não mereceram nossa atenção.
Além disso, se tal personagem não existiu, por que alguém o teria in­ventado? E por que tantas pessoas teriam acreditado na história a ponto de a religião que leva seu nome ter florescido tão rapidamente? Como indica Ge­offrey Ashe, o conceito de personagens fictícios, que está tão intricado em nossa cultura, não era de forma alguma comum aos autores da época. Mes­mo que o que estivessem escrevendo fosse essencialmente ficção, era sem­pre baseado em um personagem real, como Alexandre, o Grande. Só por essa razão parece bastante improvável que Jesus fosse uma completa invenção - e mesmo que houvesse alguma grande demanda cultural e espiritual por um "Deus Mortal", já existiam muitos na época que poderiam ser escolhidos, como veremos. Não havia necessidade de inventar um outro.
Também é significativo que os autores dos Evangelhos tenham inserido Jesus no contexto de personagens históricos conhecidos, como João Batista e Pilatos. Isso também conta a favor de sua existência, e, além disso, nenhum dos primeiros críticos do cristianismo contestou a existência de seu fundador, o que certamente teriam feito se houvesse alguma razão para dúvida.
E o modo como Jesus é retratado indica que ele era um homem real. Nenhum escritor se daria ao trabalho de criar um Messias fictício e, ainda assim, descrevê-lo como sendo tão ambíguo, até mesmo evasivo, com respei­to ao seu papel; nem tampouco lhe atribuiria ensinamentos, frases e alusões tão impenetráveis. A ambigüidade, as evidentes contradições e os modos de expressão às vezes absolutamente ininteligíveis caracterizam os Evangelhos como relatos - um tanto confusos - das palavras e feitos de um personagem histórico genuíno.
A falta de qualquer detalhe biográfico sobre Jesus em Paulo tem sido tomada pelos céticos como prova de que Cristo nunca existiu. Ninguém, porém, afirma que Paulo era uma invenção, e ele definitivamente conhecia as pessoas que haviam conhecido Jesus. Por exemplo, Paulo não só conheceu Pedro como brigou com ele (e esse comportamento pouco honroso é evi­dência de que eles eram reais - nenhum escritor naqueles dias teria coloca­do tal fraqueza em seus heróis). Portanto, parece provável que Jesus tenha realmente existido, o que não significa, porém, que tudo o que está nos Evangel­hos seja verdadeiro.
Havia, porém, uma outra razão para que muitos estudiosos do século XIX duvidassem da existência de Jesus. À medida que o conhecimento históri­co crescia e o Novo Testamento tornava-se objeto de crescente análise críti­ca, ficou evidente que a história de Jesus tinha paralelos estranhos e bastante próximos com o de famosas figuras da mitologia - especialmente com os deuses mortos-ressurrectos do antigo Oriente Médio, venerados em cultos misteriosos que floresceram à mesma época do cristianismo e eram mais antigos do que este.
Uma das argumentações mais eruditas e persuasivas sobre esse tema está na obra Pagan Christis, de J. M. Robertson, publicada em 1903. Em sua introdução a uma recente sinopse, Hector Hawton resumiu o parecer de Ro­bertson na seguinte questão:

...ninguém afirma seriamente que Adônis, Atis e Osíris eram personagens históricos... por que, então, se faz uma exceção no caso do suposto fundador do cristianismo?'.

Esses paralelos estão relacionados com o cristianismo de dois modos. Primeiro, nos relatos dos acontecimentos da vida de Jesus, como sua morte, ressurreição e a instituição da eucaristia na Última Ceia; segundo, no signifi­cado atribuído a esses acontecimentos pelos primeiros cristãos. Um breve resumo dos pontos mais relevantes, feito por Robertson e outros comentado­res importantes, sublinham o fato de que muitas das partes mais sagradas da história de Jesus são idênticas às de outras religiões antigas.
Robertson diz:

Como Cristo, Adônis e Atis, Osíris e Dioniso também padeceram e ressuscitaram. Unir-se a eles é a paixão mística de seus adoradores. Eles todos se assemelham no fato de que seus mistérios conferem imortalidade. Do mitraísmo, Cristo toma as chaves simbólicas do céu e assume a função de Saoshayant, o destruidor do Mal, nascido da Virgem.. ."

Em seus fundamentos, portanto, o cristianismo é paganismo com outra roupagem.
O mito cristão cresceu absorvendo detalhes de cultos pagãos... Como a imagem do deus-menino no culto de Dioniso, foi retratado como um bebê enfaixado em um manjedoura. Nasceu em uma estrebaria como Hórus - o templo-estábulo da deusa virgem Ísis, rainha dos céus. Novamente como Di­oniso, transformou água em vinho; como Esculápio, devolveu a vida a ho­mens mortos e deu visão aos cegos; como Atis e Adônis, foi pranteado e ex­altado pelas mulheres. Sua ressurreição, como a de Mitra, aconteceu em uma tumba de pedra...

Não há concepção associada a Cristo que não seja comum a algum ou todos os cultos de Salvadores da Antigüidade."

Se é surpreendente que os pontos levantados por Robertson e outros tenham produzido tão pouco impacto na época, é ainda mais impressionante que ainda sejam tão pouco conhecidos hoje em dia. Uma voz mais recente sobre o assunto é a de Burton L. Mack, que escreveu em 1994:

Sucessivos estudos têm demonstrado que desde o início o cristianismo não era uma religião singular mas que, na realidade, fora "influenciado” pelas religiões da Antigüidade... perturbadora foi a descoberta de que em seus primórdios o cristianismo ostentava uma clara semelhança com os cultos de mistério do helenismo, particularmente nos aspectos mais significativos, ou seja, nos mitos de deuses que morrem e renascem e em seus rituais de batismo e refeições sagradas. "

Hugh Schonfield diz em seu livro The Passover Plot:

Os cristãos hoje continuam a se inquietar com as contradições das doutrinas da Igreja, que nasceram da tentativa infeliz de misturar os ideais incompatíveis do paganismo e do judaísmo.'"

Estudiosos como Robertson achavam inconcebível que fosse apenas coincidência que tantos elementos dos cultos dos deuses mortais pudessem ser encontrados na história de Jesus. Concluíram que os Evangelhos haviam tomado emprestados os acontecimentos principais das histórias de Osíris, Atis e outros, enxertando-os em um herói "doméstico", que nunca existiu.
Um defensor recente dessa idéia é Ahmed Osman, que, em sua obra House of the Messiah, propõe a teoria de que os relatos dos Evangelhos na verdade registram uma peça de mistério que data de muitos séculos atrás, do tempo do antigo Egito. Como seus predecessores, Osman baseia seus argu­mentos nos incríveis paralelos entre o mito de Jesus e as histórias da antiga religião do Egito, e nas dúvidas relativas à existência histórica de Jesus."
Mas por que alguém roubaria parte do mistério de outra tradição e introduziria nela pessoas reais como João Batista? Osman acha que as narra­tivas dos Evangelhos foram uma invenção dos seguidores de João Batista. De acordo com sua tese, eles inventaram Jesus a fim de cumprir a profecia de seu mestre sobre aquele que viria depois dele, e cujo advento previsto foi, provavelmente, notável pela sua ausência. Entretanto, isso é implausível por muitas razões: os seguidores de João dificilmente forjariam uma história na qual seu próprio e amado mestre fosse tão marginalizado, sendo incluído apenas para servir de cenário à glorificação de outro. E, como veremos, nem mesmo é certo que João tenha feito a famosa profecia sobre um maior que viria depois dele.
De acordo com Osman, ninguém sabia da missão de Jesus como Re­dentor até sua morte, e, portanto, ele não deve ter tido um grande número de seguidores enquanto estava vivo. Osman acredita que os judeus estavam es­perando um Messias que iria morrer por eles. Mas isso não é verdadeiro - os judeus nunca esperaram que seu rei-herói fosse sacrificado ou humilhado daquela forma. A idéia toda da morte redentora, conforme a conhecemos, é uma interpretação cristã posterior.
Poucos estudiosos duvidam hoje da existência de Jesus, embora a maio­ria deles ainda tenha problemas com os evidentes exemplos de referências a escolas de mistérios presentes nos Evangelhos. Acreditando ser impossível reconciliá-los com o mais óbvio material judaico, eles tendem a rejeitar as insinuações de paganismo. Afirmam que estas foram acrescentadas quando os primeiros cristãos tomaram contato com outros pontos do grande Im­pério Romano, particularmente como resultado das viagens de Paulo. A visão aceita é a de que a igreja de Jerusalém, liderada pelo irmão de Jesus, Tiago, o Justo, representava a forma "pura" original do cristianismo. Infelizmente, em virtude de acidentes históricos, a igreja de Tiago desapareceu durante a Re­volta dos Judeus, de modo que a natureza de suas crenças continua sendo objeto de especulação. Sabemos, entretanto, que seus seguidores oravam no Templo de Jerusalém; portanto, é razoável supor que suas crenças se baseavam em práticas judaicas. Após o colapso da Igreja de Jerusalém, o palco ficou livre e Paulo pôde então ocupá-lo. Tal fato parece fornecer uma solução ele­gante para o problema de explicar por que se encontra tanto material de escolas de mistério nos Evangelhos, conforme os conhecemos.
Pode haver uma outra explicação, se invertermos o argumento. E se a versão de Paulo do cristianismo estivesse mais próxima dos ensinamentos de Jesus e fosse a Igreja de Jerusalém que tivesse caminhado pela trilha er­rada? Irmãos não necessariamente compreendem um ao outro, e com certe­za havia uma marcante frieza entre Jesus e sua família; assim, não há razão para supor que o cristianismo de Tiago estivesse mais próximo que o de Paulo dos ensinamentos originais de Jesus.
A opinião corrente acerca do desenvolvimento dos primórdios do cris­tianismo não consegue explicar por que Paulo, que também era judeu, teria sentido necessidade de pregar uma forma paganizada da religião que acaba­va de se instalar. Sua famosa conversão na estrada de Damasco provavelmente aconteceu, no máximo, cinco anos após a crucificação - e como, antes disso, ele tinha a função de perseguir os cristãos, é de presumir que ele tivesse uma boa idéia da razão por que os perseguia.
Nossas descobertas sobre a Madalena ser uma iniciadora de uma esco­la de mistério sugerem que o próprio Jesus foi também um iniciado - talvez porque ela o tenha iniciado. Mas por que ele teria se envolvido tanto com um culto pagão quando todo mundo sabia que era judeu?
Descobrimos que nada poderia ser dado como certo nessa história. Pen­samos, então, que valeria a pena desafiar os pressupostos costumeiros sobre os antecedentes religiosos de Jesus. Como Morton Smith diz ironicamente em sua obra Jesus the Magician (que discutiremos em detalhes mais à frente):
É claro que Jesus era judeu, e também  todos os discípulos - supostamente. A suposição não é segura.
Para começar, vale a pena perguntar como "sabemos” essas coisas so­bre Jesus.
A visão corrente entre os acadêmicos, discutida acima, baseia-se em dois pressupostos que tentam explicar a evidente contradição entre os ele­mentos pagãos e judeus da história de Jesus. .
O primeiro pressuposto é o de que Jesus era judeu, embora não se saiba ao certo a que seita ele pertencia. Como vimos, o segundo pressuposto é de que os aspectos claramente pagãos, relacionados a cultos de mistério, presentes nos relatos dos Evangelhos, são resultado de invenções posteriores. O argumento é que, como o cristianismo começou a se disseminar entre as comunidades não judaicas do mundo romano, as afinidades com os mistérios tornaram-se visíveis e foram elaboradas, sobretudo porque podiam ajudar a explicar o insuficiente desempenho de Jesus no papel de Messias dos ju­deus.
Foi um choque para nós descobrir que tudo era mera suposição, e não fatos comprovados. Nenhuma dessas afinidades baseia-se na qualidade de evi­dência normalmente exigida pelos historiadores. Não há provas concretas de que os elementos pagãos foram incorporados por Paulo. Podem muito bem ter sido introduzidos por seus companheiros missionários - a propagação do cristianismo, apesar da bem-sucedida publicidade de Paulo, não se deve intei­ramente a ele. Quando ele chegou a Roma, por exemplo, descobriu que já havia cristãos ali.
Ao que parece, mesmo no século XX, com todo o seu ceticismo, é tão disseminada a aceitação tácita da história do cristianismo que até os críticos acadêmicos normalmente não conseguem reconhecer suas próprias pré-con­cepções como tal. Por exemplo, A. N. Wilson, geralmente um comentador per­spicaz e analítico, escreveu as duas frases seguintes sem aparentemente no­tar a contradição entre elas:

... antes de começar [tentar responder às questões sobre o Jesus histórico], é necessário esvaziar a mente e não tomar nada por certo. O centro dos ensinamentos de Jesus era sua crença em Deus e sua crença no judaísmo.

Decidimos ver o que aconteceria se de fato questionássemos esses pres­supostos.
A versão comum do desenvolvimento dos primórdios do cristianismo sempre repousa na premissa básica de que Jesus era de religião judaica, O que significa que muitos outros aspectos do relato evangélico, que de outra forma seriam intrigantes,ficam automaticamente rejeitados. Pesquisamos mais a fundo o pressuposto judaísmo de Jesus - o que implica, sem dúvida, um substrato tanto étnico quanto religioso - e logo nos vimos contestando essa suposição. (Ele pode ter sido etnicamente um judeu, mas não de religião judaica: para os propósitos desse argumento iremos utilizar o termo "judeu" quando nos referirmos a Jesus apenas no último sentido, a menos que esteja dito que o sentido é outro.)
Claro que nosso desafio a essa suposição nos provocou certo temor: estávamos, afinal, batendo de frente com cerca de um século de estudos do Novo Testamento. Ficamos, então, mais do que aliviados ao descobrir que a última tendência nos estudos do Novo Testamento baseava-se exatamente na mesma questão: Jesus era realmente judeu?
A primeira obra relacionada com essa questão a alcançar repercussão popular foi The Lost Gospel, de Burton L. Mack, de 1994, embora muitos out­ros estudiosos tenham publicado os resultados de pesquisas que fizeram so­bre o mesmo tema em periódicos especializados já no final dos anos 80.
Mack abordou o problema do ponto de vista dos ensinamentos de Je­sus, não da história de vida dele. Baseou seu argumento na fonte perdida dos Evangelhos Sinópticos, conhecida como Q (da palavra alemã Quelle, que sig­nifica "fonte"), ou pelo menos no que pode ser reconstruído a partir da comparação desses Evangelhos. Ele conclui que os ensinamentos de Jesus não provinham do judaísmo, estando mais proximamente relacionados com os conceitos, e mesmo com o estilo, de certas escolas filosóficas gregas, especialmente a dos cínicos.
Acredita-se seguramente que Q tenha sido uma coletânea de ditos e en­sinamentos de Jesus, encaixando-se de modo perfeito no gênero específico dos textos contemporâneos conhecidos como "literatura da sabedoria", que se sabia existir entre os antigos hebreus, mas que não era de forma alguma exclu­siva da religião ou cultura judaica. Também era popular por todo o mundo helenístico, no Oriente Próximo e no antigo Egito. Kloppenborg, uma autori­dade no assunto, afirma que Q se aproxima mais do modelo dos "livros de instrução" helenísticos. Q difere desses livros por incluir material profético e apocalíptico, mas Mack acredita que somente os "ensinamentos de sabedoria" constituíam o Q original, e que o outro material foi acrescentado depois.
Mack e os outros estudiosos que trabalhavam na mesma linha baseiam suas conclusões nos ensinamentos e ditos de Jesus. Ainda rejeitam os acon­tecimentos tal como relatados nos Evangelhos porque não se encaixam nas tradições dos judeus nem dos cínicos, e sugerem que o deus morto e ressurrecto e os temas das escolas de mistério são invenções posteriores dos pri­meiros cristãos.
Fizemos a nós mesmos as seguintes perguntas: há alguma evidência que demonstre que Jesus não era judeu? Por outro lado, havia alguma evi­dência que demonstrasse conclusivamente que era? Os elementos das esco­las de mistérios tornam mais fácil ou mais difícil encontrar uma explicação?
É certo que o ministério de Jesus tem lugar dentro de um contexto judeu - na Judéia do primeiro século -, e muitos daqueles que o seguiam também eram judeus. Seus discípulos mais próximos e aqueles que escreve­ram os Evangelhos parecem ter acreditado que ele era judeu. Entretanto, seus seguidores aparentemente o consideravam uma espécie de enigma - por exemplo, não estavam certos de que ele era o Messias -, e os autores dos Evangelhos claramente fizeram um enorme esforço para conciliar os elemen­tos contraditórios de sua vida e ensinamento. Parece que não tinham certeza sobre como falar dele.
À primeira vista parece haver uma razão bastante boa para acreditar que Jesus era judeu. Ele falava com freqüência nas figuras religiosas do Anti­go Testamento, tais como Abraão e Moisés, e muitas vezes engajava-se em debates com fariseus sobre pontos da lei judaica - se ele não fosse judeu certamente não haveria qualquer razão para que fizesse isso de modo tão obsessivo.
Muitos estudiosos concordam, porém, que essas passagens são as menos prováveis de conter palavras genuínas de Jesus. Foram acrescentadas depois porque os Apóstolos viram-se obrigados a debater pontos da lei judaica e sentiram necessidade de criar uma justificativa anterior para seus argumen­tos, utilizando o próprio Jesus. A prova disso é que os antagonistas nas histórias do Novo Testamento geralmente são os fariseus, que na verdade não tinham nenhuma função ou autoridade especial, ainda mais na Galiléia, no tempo de Jesus, enquanto que na época em que os Evangelhos estavam sendo compi­lados eles gozavam de influência." Como diz Morton Smith:

Pode-se demonstrar que quase a totalidade das referências dos Evangelhos aos fariseus são derivadas dos anos 70, 80 e 90, os últimos anos nos quais os Evangelhos estavam sendo editados.

A única maneira de entender as verdadeiras origens de Jesus é colocá­-lo no contexto de sua época e lugar. Embora haja um debate contínuo sobre onde nasceu e cresceu, como veremos, os Evangelhos concordam que ele deu início a sua missão a partir da Galiléia. É improvável, porém, que fosse de lá, porque embora os Evangelhos façam referência ao característico sotaque galileu dos discípulos - que era considerado comicamente rústico pelos nas­cidos na Judéia -, não se diz a mesma coisa sobre Jesus."
Portanto, o que é que sabemos sobre a Galiléia da época de Jesus? Mack assim resume a visão acadêmica corrente sobre aquele lugar naquela época:

No mundo da imaginação cristã, a Galiléia pertencia à Palestina, a religião da Palestina era o judaísmo e, portanto, todos na Galiléia deveriam ser judeus. Uma vez que essa imagem está errada... o leitor precisa ter em mente uma imagem mais verdadeira."

Aquilo que pensamos ser o judaísmo na época de Jesus - a partir da imagem que nos oferecem os Evangelhos - na verdade era apenas o judaísmo de templo da Judéia, cujo centro de oração era o Templo de Jerusalém. Foi fundado pelos judeus após sua traumática passagem pelo cativeiro na Babilônia e estava em constante estado de mudança. Nem todos os judeus, porém, foram exilados, e sua versão do judaísmo desenvolveu-se separadamente e era muito diferente daquela dos ex-cativos que retornaram. A religião dos não-exilados era especialmente praticada na Samaria e na Galiléia, ao norte, e na Iduméia, ao sul da Judéia.
A Galiléia, entretanto, dificilmente seria um lugar apropriado para o judaísmo fervoroso, de qualquer tipo. Fizera parte, é verdade, do reino de Israel, mas por um breve período e muitos séculos antes de Jesus aparecer, e desde então estivera sob influência de diversas culturas diferentes. Não sem razão a Galiléia era conhecida como "a pátria dos gentios"." Chegava a ser mais cosmopolita do que Samaria, que ficava entre a Judéia e a Galiléia. Como diz Mack: "Seria errado imaginar que a Galiléia repentinamente foi conver­tida à lealdade e à cultura judaicas."
A Galiléia, com seu clima bom para a agricultura e pesca lucrativa no lago da Galiléia, era uma região rica e fértil.Tinha amplas ligações comerciais com outras culturas do mundo helenístico e ficava no centro de uma rede de rotas de comércio que levavam ao restante da Síria, Babilônia e Egito. Abriga­va povos de muitas terras e culturas e mesmo os homens das tribos beduínas eram visitantes comuns. Como assinala Morton Smith, as influências princi­pais na religião da Galiléia naquela época eram os "nativos, os palestinos, o paganismo semítico, os gregos, persas, fenícios e egípcios".
A Galiléia era conhecida por sua bravia Independência. Porém, nas pa­lavras de Mack, a região não tinha "uma capital, nem templo e nem hierarquia de sacerdotes". Significativamente, a sinagoga mais antiga conhecida na Gal­iléia data apenas do século III da era cristã.
A região fora anexada a Israel no ano 100 a.C. e logo depois, em 63 a.C., os romanos conquistaram toda a Palestina e fizeram dela uma província de seu Império. Na época do nascimento de Jesus, toda a Israel era governada por Herodes, o Grande - um rei-títere controlado pelos romanos -, que era na verdade um indumiano politeísta. Quando Jesus iniciou seu ministério, porém, a terra estava dividida entre os três filhos de Herodes. Herodes Antipas gov­ernava a Galiléia, e (após seu irmão Arquelau ter sido forçado a se refugiar na propriedade da família de Herodes no sul da França) a Judéia era gov­ernada diretamente por Roma, através de seu governador Pôncio Pilatos.
Na época de Jesus, a Galiléia era uma região próspera e cosmopolita ­não o lugar remoto e rústico da imaginação popular - e não era nem mesmo predominantemente judia; para os galileus, as autoridades em Jerusalém não prevaleciam mais do que seus senhores romanos.
Uma vez que se compreenda que a Galiléia era muito diferente da ima­gem tradicional que se tem do lugar, imediatamente começam a brotar questões sobre as reais intenções e motivações de Cristo. Se a Galiléia tinha realmente uma cultura sofisticada sem qualquer fanatismo contra os romanos ou a favor dos judeus, então estaria realmente Jesus tentando sublevar a pop­ulação para uma rebelião contra os romanos, como sugerem alguns comenta­dores modernos? E seria a Galiléia o melhor lugar para iniciar algum tipo de campanha de reforma do judaísmo, como acreditam outros?
Embora houvesse judeus na Galiléia, havia também muitas outras re­ligiões que coexistiam em uma invejável atmosfera de tolerância. Havia até mesmo algumas formas "heréticas" de judaísmo que lá floresceram, o que torna ainda mais implausível a idéia de que aquele solo era promissor para se implantar qualquer tipo de reforma judaica. Em uma região onde, apa­rentemente, várias formas religiosas conviviam pacificamente, uma tentativa de redefinir a corrente principal do judaísmo estaria fadada ao fracasso. E isso explicaria ainda menos a culminação da missão de Jesus em Jerusalém.
Como diz Schonfield em The Passover Plot:

...os judeus consideravam o norte da Palestina como a terra natural da heresia... Não sabemos muito sobre a antiga religião israelita, mas parece que ela havia absorvido uma boa parte dos cultos sírios e fenícios, que não estavam nem mesmo perto de ser erradicados, como acontecera no sul, pelo zelo reformista de Ezra e seus sucessores.

Um outro território do norte que viria a ser importante para Jesus era a Samaria, celebrizada pela história do Bom Samaritano. Devido a inúmeros sermões sobre o assunto, os freqüentadores de igreja entendem que os sama­ritanos eram injuriados pelos outros judeus, e que a história do samaritano que cruzou a estrada para socorrer uma vítima de assalto é um exemplo per­feito da necessidade de reconhecer o potencial para o bem em qualquer pessoa.
Entretanto, há uma outra razão para se levar a Samaria seriamente em conta no contexto de nossa investigação. Os samaritanos tinham suas própri­as expectativas com respeito à chegada de um Messias, que eles chamavam de Ta'eb e que era consideravelmente diferente daquele da versão judaica. No Evangelho de João (4:6-10) lemos que Jesus encontrou num poço uma mulher samaritana que o reconheceu como o Messias, provavelmente como Ta'eb, o que indica que seu judaísmo era, no mínimo, heterodoxo. Talvez Je­sus tenha inventado a parábola do Bom Samaritano como uma forma de "agra­decimento aos samaritanos por seu apoio.
Um outro engano sobre Jesus está na idéia de que ele era "Jesus de Nazaré. - ou seja, que ele viera da cidade desse nome, que existe hoje na moderna Israel. Não existe, porém, nenhum registro desse lugar até o século III.A palavra deve ser nazoreano, que identifica Jesus como membro de uma das muitas seitas que coletivamente utilizavam esse nome, mas não como seu fundador. Os nazorenos eram um grupo de seitas correlatas sobre as quais pouco se conhece. Entretanto, a palavra por si só é interessante, já que deriva do hebreu notsrim, que significa "Guardiães ou Preservadores... os que guar­dam o verdadeiro ensinamento e tradição, ou que cuidam de determinados segredos que não divulgavam para outros "
Isso por si só vai contra um dos maiores princípios do cristianismo, que é o de que a religião é para todos e não tem segredos - o extremo oposto das escolas de mistérios, que ofereciam diferentes graus de conhecimento ou iluminação àqueles que galgavam os degraus cada vez mais íngremes da iniciação. Para esses cultos, a sabedoria é oferecida somente se conquistada, e o pupilo obtém maiores percepções apenas quando seus mestres espirit­uais consideram que ele está pronto. Essa era uma noção bastante comum na época de Jesus: as escolas de mistério gregas, romanas, babilônias e egípcias costumavam empregar essa estrutura de ensino e guardavam seus segredos zelosamente. Hoje em dia essa abordagem das escolas de mistério é emprega­da em muitas escolas religiosas e filosóficas do Oriente (incluindo o budis­mo zen), bem como por grupos como os maçons e templários. O próprio conceito da iniciação é também o que dá nome ao ocultismo, pois, como vimos, a palavra significa apenas "escondido. - os mistérios permanecem se­cretos até que tenha chegado o momento certo e o aluno esteja pronto. Se os ensinamentos de Jesus não se destinavam às massas, então por sua própria natureza eram elitistas e hierárquicos - e ocultos. E, como vimos quando reavaliamos o verdadeiro status de Maria Madalena, as semelhanças entre as escolas de mistérios e o movimento de Jesus são numerosas demais para ser ignoradas.
Há muitos outros equívocos sobre Jesus. Por exemplo, a história do natal é basicamente um conto de fadas - relacionado com os mitos de nati­vidade de outros deuses mortais -, e há dúvidas inclusive de que Jesus tenha realmente nascido em Belém. De fato, o Evangelho de João (7:42) declara explicitamente que ele não nasceu lá.
Embora muitos dos elementos da Natividade tenham derivado clara­mente dos mitos de nascimento de outros deuses mortos e ressurrectos, a visita dos sábios vindos do Oriente baseia-se num relato da época sobre a vida do imperador Nero. Algumas vezes essas figuras são conhecidas como magos, que é exatamente o título dado a uma tradição dos magos, ou feiti­ceiros, persas. Parece ser muito estranho ter o equivalente de três Aleister Crowley visitando o menino Jesus para dar-lhe presentes, sem uma palavra sequer de crítica ou censura por parte dos autores dos Evangelhos. E a julgar pelo fato de que afirmavam ter seguido a estrela de Belém, eram também astrólogos (a astronomia enquanto disciplina separada era desconhecida naqueles dias). A história de feiticeiros dando a Jesus ouro, incenso e mirra definitivamente é algo que deveria nos impressionar. (Como vimos, porém, Leonardo em sua Adoração dos reis magos omitiu o ouro, símbolo de rea­leza e de perfeição.)
Vimos também que Jesus é mencionado como um naggar, que signifi­ca tanto carpinteiro como erudito ou homem instruído - no caso dele, pro­vavelmente o último. Tampouco seus discípulos mais famosos eram os hu­mildes pescadores da lenda: A. N. Wilson observa que na verdade eram donos de um comércio de peixes no lago da Galiléia." (Além disso, como reforça Morton Marks, alguns dos discípulos obviamente não eram judeus: Felipe é um nome grego, por exemplo.")
Muitos comentadores têm usado as parábolas como prova de que Je­sus era de origem humilde: suas analogias freqüentemente giravam em torno da vida rural cotidiana e de situações domésticas, e isso é tomado como pro­va de que ele tinha experiência pessoal nessas coisas. Outros assinalam, entretanto, que seu imaginário realmente revela apenas um conhecimento superficial das realidades mundanas da vida - é como se ele fosse na verdade uma pessoa de classe social bem mais alta, que deliberadamente tentava falar a linguagem das massas, como um aristocrata do partido conservador inglês dirigindo-se a eleitores da classe trabalhadora com termos que ele espera serem familiares a estes.
Mesmo que o casamento em Canã não fosse, como acreditam alguns, a ocasião de seu próprio casamento com Madalena, ainda assim demonstra que ele se movimentava entre os vários círculos da “sociedade", a julgar pelas celebrações. E o episódio dos soldados romanos jogando dados aos pés da cruz para ver quem ficava com as roupas de Jesus, sugere que valia a pena disputá-las. Ninguém aposta para ganhar trapos.

Portanto, o quadro que surge sobre os antecedentes de Jesus é signifi­cativamente diferente daquele que a maioria de nós cresceu ouvindo. A pró­xima questão é saber se há algum pressuposto sobre Jesus que seja plena­mente justificado? Por exemplo, há alguma evidência positiva nos Evangelhos para a noção de que Jesus não era judeu?
Após o batismo, Jesus se retirou no deserto onde foi testado pelo Demônio, que tentou seduzi-lo a revelar sua divindade. Mais uma vez, en­tretanto, isso de forma alguma é claro. Alguns sugerem que a tentação revela apenas a implícita rejeição de Jesus ao próprio Jeová. Isso pode ser dis­cutível, mas um episódio reflete definitivamente sua atitude para com o Deus judeu.
Uma das passagens mais famosas do Novo Testamento é quando Jesus, irado ao ver os comerciantes de dinheiro no Templo, derruba suas bancas. Embora esse pareça ser um episódio simples, na verdade coloca um outro grande problema, há muito reconhecido por teólogos e estudiosos do Novo Testamento.
Embora as ações de Jesus sejam geralmente explicadas pelo horror que ele sentiu ao ver um local sagrado ser contaminado por transações financei­ras, essa é uma atitude muito ocidental e bastante recente na verdade. Pois a troca de dinheiro a fim de comprar animais para o sacrifício no Templo de Jerusalém não era algo nem corrupto nem abusivo. Era uma parte fundamen­tal da veneração. Como enfatiza John Dominic Crossa, catedrático de Estudos Bíblicos da Universidade de Chicago: "Não há nenhum indício de que alguém estivesse fazendo alguma coisa imprópria, nem em termos financeiros nem de sacrifícios”. E segue dizendo que isso foi "um ataque direcionado à própria existência do Templo... uma negação simbólica de tudo... o que representava o Templo".
Alguns tentaram explicar esse gesto - que foi central no ministério de Jesus - argumentando que ele expressava sua insatisfação com o regime que então vigorava no Templo. Porém, no contexto da época e do lugar, tal reação teria sido exagerada, a ponto de indicar desequilíbrio mental. Para fazer uma analogia atual, seria como um anglicano que, para protestar contra a orde­nação de mulheres, fosse à abadia de Westminster e pisoteasse a cruz sobre o altar. Isso simplesmente não aconteceria, porque os devotos sabem traçar o limite entre uma ação que é apropriada - por mais simbólica que seja - e o tipo de protesto que se constitui na verdade em um sacrilégio. E o que Jesus fez foi um sacrilégio.
Assim, o judaísmo de Jesus era, para dizer o mínimo, heterodoxo. Isso abre caminho para novas hipóteses sobre o que ele realmente era. E há claras indicações de que fazia parte de uma escola de mistério. Existem, porém, episódios nos Evangelhos que indiquem ser esse o caso?
Foi quase um choque descobrir, logo no início de nossas investigações, que somente uns poucos pesquisadores pareciam ter feito a pergunta que para nós era fundamental: "Onde será que João Batista foi buscar o ritual do batismo?" Investigações posteriores revelaram não haver qualquer precedente desse ritual no judaísmo, embora sejam encontradas referências de rituais de lavagem - imersões repetidas simbolizando a purificação - nos Manuscritos do Mar Morto, Entretanto, não é correto descrever esses rituais como "batis­mos": o que João propunha, na verdade, era um ato único de iniciação, de mudança de vida, que era precedido pela confissão e arrependimento dos pecados. O fato de que esse ritual não tinha precedente no judaísmo é indi­cado pelo título ou apelido de João - o Batista, o único e não um entre mui­tos. Realmente, o batismo sempre foi tido como uma inovação introduzida por João, embora haja de fato muitos precedentes e paralelos exatos fora do mundo judaico.
O batismo como um símbolo externo e visível de uma renovação es­piritual interna fazia parte de muitos cultos de mistério que existiam por todo o mundo helenístico naquela época.Tinha uma tradição particularmente longa no culto à Isis do antigo Egito; e, significativamente, o batismo em seus templos, às margens do Nilo, era precedido pelo arrependimento público e a confissão dos pecados ao sacerdote. (Isso será discutido mais de perto no próximo capítulo,)
Além disso, aquele foi o único período na longa história da religião de Isis durante o qual foram enviados missionários a países além das fronteiras do Egito; assim, parece provável que João tenha sido particularmente influ­enciado pelo ritual de batismo dos egípcios. Como veremos, pode ser que ele tenha tido uma experiência pessoal da religião de Isis no próprio Egito, pois, segundo antigas tradições cristãs, a família de João teria fugido para o Egito a fim de escapar da fúria de Herodes - tradições que encontraram expressão na Virgem dos rochedos de Leonardo da Vinci.
O batismo de Jesus apresenta diversos problemas. Primeiro, e de modo algum o menor deles, é a idéia de que um Filho de Deus, e portanto sem pecados, realmente necessitasse purificar-se de seus pecados. Dizer que Je­sus estava dando um bom exemplo a seus seguidores - como muitos tenta­ram argumentar - não serve, de modo algum, de explicação, pois em nenhum lugar nos Evangelhos é possível encontrar algo que corrobore tal noção.Tam­bém há, por outro lado, significativas anomalias no próprio imaginário que os relatos evangélicos empregam ao descrever o batismo de Jesus por João. Enquanto Morton Smith diz que a aparição da pomba não tem paralelo ou precedente na tradição judaica, Desmond Stewart vai mais além e encontra claras ligações com o simbolismo e as práticas do Egito. Diz ele:

Embora Jeová supostamente tenha enviado corvos para alimentar um profeta, ele normalmente não se manifestava na forma de pássaros descendo dos céus, As pombas, de qualquer modo, eram sagradas para as deusas pagãs do amor, então conhecidas como Afrodite ou Astarte...
Para o que Jesus pensou ter visto, os egípcios têm uma explicação mel­hor... Quando Re [ou Ra,o sol-deus dos egípcios] abraçou seu amado, o faraó, acolhendo-o em seu peito, ele o fez na aparência de Horus, cujo símbolo mais comum era o falcão...
A adoção, em um ritual de batismo, de um mortal por uma deidade não representava um problema para os egípcios.

A principal deidade egípcia geralmente associada com o símbolo de uma pomba é, entretanto, mais uma vez, Ísis, conhecida como a "Rainha dos Céus", "Estrela do Mar" (Stella Maris) e "Mãe de Deus" muito antes de que a "Virgem" Maria nascesse. Ísis era freqüentemente retratada amamentando Horus, o mágico rebento de sua união com o morto Osíris. No festival anual que marcava a morte e ressurreição de Osíris três dias depois, dizia-se que o sol tornara-se negro no instante de sua morte, quando ele adentrou o Sub­mundo. (E é um sol negro que brilha sobre a cena da crucificação no mural de Jean Cocteau em Londres.)
Dado o zelo missionário incomum de alguns grupos devotos de Ísis na época, e a proximidade geográfica do Egito - para não mencionar a natureza cosmopolita da Galiléia -, não é de surpreender que João, Jesus e aqueles que os seguiam tivessem sido influenciados pelo culto a Ísis.
O que causa admiração é que a maioria dos cristãos ainda é encorajada a pensar que sua crença é única, em todos e cada um de seus aspectos, incon­taminada por nenhuma outra filosofia ou religião, quando isso claramente não é verdade. Considere, por exemplo, a Última Ceia, na qual Jesus teria dado início ao sacramento da refeição sagrada do pão e vinho, que represen­tava o sacrifício de seu corpo e de seu sangue.
A. N. Wilson escreve: "Isso apresenta fortes indícios dos cultos de mis­tério do Mediterrâneo e pouco tem em comum com o judaísmo". Ele então utiliza esse paralelo como evidência para sua idéia de que a Última Ceia foi uma invenção dos autores dos Evangelhos; mas e se ela realmente aconteceu como um ritual pagão?
Desmond Stewart reforça o paralelo dizendo:

(Jesus) pegou o pão e o vinho, elementos do cotidiano da sociedade e que constituem no entanto, o ápice do simbolismo de Osíris, e os transformou, não em sacrifício, mas em um elo entre dois estados de ser.

Os cristãos vêem o sacramento do pão e vinho - o clímax da comunhão protestante e da missa católica - como uma exclusividade de Jesus. De fato, isso já era uma prática comum de todos os principais Deuses Mortais das escolas de mistério, incluindo as de Dioniso, Tamus e Osíris. Acreditava-se que tal ritual era um meio de se tornar um com o deus em questão e alcançar elevação espiritual (embora os romanos expressassem horror diante do antropofagismo aí implícito). Todos os outros cultos estavam bem represen­tados na Palestina da época da Última Ceia, portanto sua influência é com­preensível.
De todos os quatro Evangelhos, talvez seja significativo que o de João fale da Ceia mas omita qualquer menção à cerimônia do pão e vinho - talvez porque não tenha sido nessa ocasião que ela realmente teve início. No Evange­lho de João (6:54) está implícito que o sacramento do pão e vinho foi pro­movido desde os primeiros dias da trajetória de Jesus na Galiléia.
O próprio conceito de comer e beber o deus - o ritual da missa - é abominável aos olhos dos judeus. Como observa Desmond Stewart:

A noção de que o milho fosse o próprio Osíris era comum aos egípcios, e uma idéia semelhante estava vinculada a Deméter e Perséfone [deusas] na própria Hélade [Grécia].

Um outro paralelo com as escolas de mistério - e que não encontra equivalente na crença ou prática judaica - é a história da ressurreição de Lázaro. Trata-se claramente de um ato de iniciação: Lázaro é "despertado" pela morte e renascimento simbólicos, um elemento comum das escolas de mis­tério da época e que se repete em certos rituais da maçonaria atual. O único Evangelho canônico a registrar esse episódio, o de João, faz dele um milagre, uma ressurreição literal dentre os mortos. O Evangelho Secreto de Marcos, porém, deixa claro que é apenas um ato simbólico, frisando a "morte" do antigo ser de Lázaro e seu renascimento como um ser mais espiritualizado. Provavelmente o episódio foi cortado dos outros Evangelhos porque era uma alusão por demais óbvia às atividades das escolas de mistério. Porém, no que diz respeito a esta investigação, o aspecto mais significativo sobre esse ritual é sua correspondência mais direta com as cerimônias de "renascimento" do culto de Ísis no Egito. Como diz Desmond Stewart (referindo-se ao misticis­mo do primeiro século, ligado a Ísis):

...a evidência de Betânia indica que Jesus praticava um tipo semelhante de mistério ao que Lúcio Apuleio experimentou no culto de Ísis.

Mesmo a crucificação reforça a negação do povo judeu de que Jesus fosse o Messias esperado, pois morrer em circunstâncias tão desonrosas seria a última coisa que se poderia esperar de um Messias que a todos se imporia. No entanto, isso não causa qualquer desconforto entre os cristãos, pois sustentam que o messiado de Jesus foi muito além, em termos espirituais, do que os judeus esperavam. Entretanto, existem outros problemas com o relato do Novo Testamento sobre a morte de Jesus. Parece que a interpretação cristã de que sua morte constitui o supremo sacrifício místico foi inventada, na verdade, posteriormente, a fim de explicar a discrepância entre o que esperavam os judeus de seu Messias e o que realmente aconteceu a Jesus.

Chegou-se a sugerir que Jesus e aqueles que pertenciam a seu círculo desenvolveram seu próprio conceito do Messias, incorporando-lhe o ideal do Justo Sofredor, derivado da figura de José nos textos apócrifos judeus. Signifi­cativamente, porém, no norte herético da Palestina, o José "sofredor" absor­vera algumas das características do culto sírio a Adônis-Tamus. Os estudio­sos observaram também a influência do deus pastor Tamus no Cântico dos Cânticos, que é, como vimos, de suma importância para o culto da Madona Negra. É provável que Jesus chamasse a si mesmo de Bom Pastor em referência a Tamus, e que seus seguidores na época estivessem familiarizados com o termo; Belém era um dos principais centros do culto a Adônis-Tamus. (É inter­essante que cristãos, como São Jerônimo, tenham se exasperado com a ex­istência de um templo a Tamus no suposto local de nascimento de Jesus em Belém.)
É digno de nota, entretanto, que embora muitos comentadores atuais reconheçam a presença de uma forte influência pagã na vida e nos ensina­mentos de Jesus, não se animem a explorá-la além da superficialidade. Por exemplo, como diz Hugh Schonfield:

Deve-se a um nazoreano da Galiléia a percepção de que a morte e ressurreição era uma ponte entre duas fases [do Justo Sofredor e do Rei Messiânico]. A própria tradição de uma terra onde Adônis anualmente morria e renascia parecia clamar por isso.

Geoffrey Ashe admite: "Cristo tornou-se um Salvador visivelmente seme­lhante aos deus mortos-ressurrectos dos Mistérios, Osíris, Adônis e os demais."
Entretanto, o arquétipo que mais se aproxima da vida e história de Jesus, tal como ela nos chegou, é a do deus egípcio Osíris, consorte de Ísis. Tradicionalmente ele morria em uma sexta-feira e renascia após três dias. E existem pistas de que nos primórdios do cristianismo o título Christos era confundido com outra palavra grega, Chrestos, que significa gentil ou bon­doso. Alguns dos primeiros manuscritos gregos dos Evangelhos utilizam es­sas palavras no lugar de Christos. Porém, Chrestos era um dos epítetos tradi­cionalmente dirigidos a Osíris -,e, o que é significativo, há também uma inscrição em Delos para Chreste Isis.
A súplica de Jesus na cruz também abre espaço para uma interpretação dentro dos moldes do paganismo. Tanto a versão de Marcos, "eloi eloi!" quanto a de Mateus, "eli eli!", são traduzidas como "Meu Deus! Meu Deus! [por que me abandonaste?]", embora se registre que alguns dos circunstantes entenderam mal o que ele dissera e pensaram que estivesse chamando pelo profeta Elias, a quem o próprio Jesus especificamente associara a João Batista. Porém, em aramaico "Meu Deus" deveria ser ilahi. Desmond Stewart sugere que a pala­vra era, na verdade , Helios, o nome do deus-sol - o que é particularmente inte­ressante porque a súplica está ligada ao anômalo período da escuridão em plena tarde. De fato, um dos primeiros manuscritos conhecidos do Novo Testa­mento diz que os circunstantes pensaram que Jesus estava chamando por Helios, cujo culto - bastante difundido na Síria até o século IV - foi cristianizado com a substituição do nome por Elias. E obviamente um deus sol é a quintessência do ciclo de morte e renascimento.
 Podemos ver, portanto, que Jesus se enquadra facilmente na tradição do deus mortal, mas esse arquétipo não constitui o quadro integral dos anti­gos mistérios. O deus - Osíris, Tamus, Atis, Dioniso ou qualquer outro - era inevitavelmente associado com sua consorte, a deusa, que geralmente desempenhava o papel principal no drama da ressurreição. Como coloca Geoffrey Ashe:

O deus companheiro era sempre o amante condenado e trágico da Deusa, que morria anualmente com o verde da natureza e renascia na primavera. ..

Se Jesus de fato estava cumprindo uma tradição de "Deus Mortal", é evidente que algo estava faltando. Ashe acrescenta:

Em seu papel de Salvador morto e renascido ele não poderia ser alguém solitário. Tais deuses normalmente nunca faziam tal coisa... Não haveria Osíris sem Ísis, nem Atis sem Cibele.

Os críticos podem dizer que, como Jesus não tinha uma deusa-compa­nheira, ele não poderia estar representando o papel de um deus mortal. Ele era ­dizem - único em sua verdadeira divindade e não precisava de mulher alguma para compartilhar isso com ele. Mas, e se ele realmente tivesse uma companhei­ra? E com certeza tinha - é esse conhecimento que tem sido acalentado em segredo por gerações de "hereges". A "Ísis" de Jesus era Maria Madalena.
Os egípcios se dirigiam a sua rainha Ísis como "Soberana dos deuses... Tu, senhora, de vestes vermelhas... soberana e senhora do sepulcro..." Ma­dalena tradicionalmente é retratada com vestes vermelhas, o que tem sido considerado como uma referência a ela ter sido uma "mulher escarlate" (expressão pejorativa que designa uma mulher promíscua, uma prostituta). E foi Madalena quem presidiu as cerimônias na tumba de Jesus.
Se aceitamos isso, grande parte do que foi perdido, deliberadamente obscurecido e distorcido finalmente se encaixa, incluindo a própria natureza do que pode ser chamado de verdadeiro cristianismo.
Apesar das primeiras impressões, o Princípio Feminino não está ausente dos Evangelhos - pelo menos não dos textos originais. As famosas palavras iniciais do Quarto Evangelho são "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus". Embora o conceito do Verbo (Logos) seja deriva­do das idéias do filósofo judeu neo-platônico Filo de Alexandria, contemporâ­neo de Jesus, nessa versão de João ele parece ser explicitamente Feminino. Logos é um substantivo masculino mas, paradoxalmente, o conceito que ele descreve parece ser feminino. É evidente que alguma confusão se fez quando o Evangelho foi extraído de sua fonte original, e posteriormente viemos a per­ceber o significado das origens verdadeiras dessa passagem.
 A frase "e o Verbo estava em Deus" é uma péssima tradução, que modi­fica completamente o sentido verdadeiro, mas, convenientemente, remove algumas implicações muito embaraçosas. Pois as palavras gregas originais são pros ton theon, que literalmente significam "indo em direção a Deus" e ex­pressam o significado de um homem buscando unidade com uma mulher. Como nos diz George Witterschein:

... podemos até mesmo utilizar a palavra erótico para descrever o anseio de que a unidade sobrepuje a separação.

A chave de tudo isso... era a atração entre homem e mulher, que equivale... à atração entre o Verbo e Deus.
Em outras palavras, o Verbo é feminino. E, significativamente, a tradução mais exata das linhas iniciais do Evangelho de João é:

No princípio era o Verbo, e o Verbo foi ao encontro de Deus, e Deus era o que o Verbo era. E estava com Deus no princípio.

Portanto o Verbo era uma força distintamente separada de Deus. É sig­nificativo que geralmente se entenda o Verbo e o Espírito Santo como uma só coisa, embora o termo original para o último fosse inequivocamente femini­no. Era Sophia.
Os conceitos evocados nessas linhas são claramente não-judaicos. Mas tampouco são originários dos primórdios da "nova" religião emergente do cristianismo. O antropólogo norte-americano Karl Luckert, que é também professor de História da Religião e realizou um importante estudo da religião egípcia e sua influência sobre os conceitos teológicos e filosóficos posteri­ores, não tem qualquer dúvida sobre sua verdadeira origem. Ele escreve:

...em toda a literatura religiosa do chamado período helenístico,não há um resumo melhor da antiga teologia ortodoxa egípcia do que o prólogo ao Evangelho de João.

Desmond Stewart, em sua obra The Foreigner, argumenta que Jesus foi criado no Egito, se é que não nasceu lá. Mesmo assim poderia ser judeu, pois havia grandes e prósperas comunidades judaicas no Egito naquela época. Stewart assinala que muitas coisas sobre Jesus, desde a ausência de sotaque galileu até a ênfase e a essência implícita de suas parábolas, sugerem uma formação egípcia. E, é claro, o Novo Testamento nos diz que Maria, José e o menino Jesus fugiram para o Egito a fim de escapar da fúria de Herodes. Afora o episódio de Jesus discutindo com os anciãos no Templo de Jerusalém quan­do tinha doze anos, não há qualquer outra menção aos anos de sua juven­tude. Entretanto, mesmo esse episódio é certamente uma invenção, pois nele Maria e José expressam sua ignorância sobre a divindade de Jesus - imediata­mente depois da história de seu miraculoso nascimento, que eles com certe­za deveriam conhecer! Então nada há de autêntico sobre Jesus nos Evangel­hos canônicos desde sua infância até sua maturidade. Por onde ele andou? Por que há esse silêncio sobre sua infância e adolescência? Porém, se ele esteve fora do país, vivendo numa outra cultura, os autores podem ter achado que seria impróprio - ou, mais provavelmente, que não tinham talento ­para forjar toda uma série de eventos para preencher a lacuna.
Outras fontes confirmam essa visão. O Talmude, livro sagrado judeu, afirma dogmaticamente que Jesus viera do Egito, não da Galiléia ou de Nazaré. Além disso, e talvez ainda mais revelador, o Talmude afirma sem qualquer dúvida que Jesus foi preso sob a acusação de feitiçaria, e que ele era iniciado na magia egípcia. Esse conceito foi também o ponto fundamental do livro de Morton Smith, Jesus the Magician (1978), no qual sugere que tais milagres, como transformar a água em vinho e andar sobre a água, são apenas parte do repertório tradicional dos feiticeiros egípcios, assim como o truque da corda dos faquires orientais.
Smith dá muitos exemplos da semelhança entre os milagres de Jesus e os conjuros e encantamentos encontrados nos textos dos papiros egípcios da mesma época, bem como paralelos com a vida e a obra do famoso mago Apolônio de Tiana (um contemporâneo mais jovem de Jesus) e de Simão Mago. A esses dois homens se creditavam habilidades quase idênticas às de Jesus.
Os cristãos podem dizer que isso não passou de um mal-entendido, por parte das massas crédulas, que deu margem ao surgimento de um Jesus ocultista: seus milagres eram na verdade uma dádiva do Espírito Santo. En­tretanto, trata-se de uma interpretação tão subjetiva quanto a outra e, na ver­dade, tem poucos argumentos a seu favor. Morton Smith chama a atenção para um outro grande paradoxo do cristianismo:

...temos de levar em conta não apenas a tradição que tentou livrar Jesus da acusação de magia, mas também aquela que o reverenciou como um grande mago.

Existiam muitos magos itinerantes - feiticeiros - mais ou menos céle­bres, no mundo greco-romano da época de Jesus, e um lugar-comum de seu repertório era a cura e o exorcismo - como acontece hoje em dia entre os homens santos indianos e os sacerdotes do vodu, entre outros. (É discutível se as supostas curas são mesmo genuínas, mas o assombro das multidões é bastante real, e a propaganda boca a boca contribui muito para criar a repu­tação do fazedor de milagres.)
Smith sugere que o termo "Filho de Deus" - que sempre intrigou os teólogos e estudiosos do Novo Testamento, pois não existe precedente ju­daico e não era um conceito associado ao Messias - é ele próprio derivado da tradição egípcio-greco-romana. O mago bem-sucedido conquistava suas habilidades ao se permitir converter em um conduto de deus, como os xamãs tribais. Portanto, sugere Smith, Jesus tornou-se o Filho de Deus ao ser magi­camente possuído pela deidade.
O milagre da "água transformada em vinho" nas bodas de Canã revela suspeita semelhança com um relato de uma cerimônia dionisíaca realizada em Sidon, até mesmo nas palavras utilizadas. E, no mundo helenístico, Dio­niso estava explicitamente associado a Osíris. Smith também extrai de dois textos mágicos egípcios o paralelo com a eucaristia, o ritual de repartir o pão e o vinho - que é tão sagrado para os cristãos porque acreditam que era praticado unicamente por Jesus. Diz Smith:

Estes são os paralelos mais próximos com o texto da eucaristia. Neles um deus-mago dá seu próprio corpo e sangue para o receptor que, ao comê-lo, unir-se-á a ele em amor.

Até mesmo as palavras proferidas por Jesus são similares às dos textos de magia.
Existem outras pistas - na verdade nos próprios Evangelhos - de que muitos achavam que Jesus era um mago. No Evangelho de João, os que en­tregam Jesus a Pilatos referem-se a ele como um "malfeitor". No direito ro­mano, esse era o termo utilizado para designar um feiticeiro.
Nesse contexto, o aspecto mais significativo da pesquisa de Morton Smith é que, embora baseiem-se inteiramente na comparação entre os Evange­lhos e os papiros sobre magia, suas conclusões se encaixam exatamente no modo como Jesus é retratado no Talmude judeu e nos primeiros textos rabínicos. Estes nunca descreveram Jesus como um judeu que inventou uma for­ma herética de judaísmo, como muitos cristãos de hoje em dia acreditam. Consideram-no ou como um judeu convertido a outra religião, ou como al­guém que nunca fora na verdade judeu. De fato, eles o denunciam especifica­mente como um praticante da magia egípcia. O próprio Talmude declara, inequivocamente, que Jesus passou seus anos de juventude no Egito e que lá ele aprendeu magia.
Em um conto da literatura rabínica, Jesus é comparado a um perso­nagem anterior chamado Ben Stada. Este era um judeu que tentara introduzir o culto de outras deidades pagãs, paralelamente ao de Jeová, e que tinha trazido as práticas da magia do Egito. O conto enfatiza que, de modo similar, Jesus trouxera as práticas mágicas do Egito para os judeus. Outros textos rabínicos são igualmente explícitos nesse ponto: Jesus "praticava magia e lud­ibriou e desencaminhou o povo de Israel".
Fica claro que os judeus contemporâneos de Jesus viam-no como um adepto da magia egípcia. Seu crime, aos olhos destes, foi ter tentado introduzir idéias pagãs e deuses pagãos no território judeu.
O Talmude e outras coletâneas de textos rabínicos podem ser rastrea­dos somente até o século III, dando margem a acusações de difamação delibe­rada por parte dos inimigos de Jesus, os judeus. Entretanto, essas acusações, que na essência são de feitiçaria, podem não ter nascido apenas da malícia, como à primeira vista poderia parecer. São acusações incomuns para serem forjadas, e existem indícios de que tais idéias sobre Jesus já eram correntes antes.
Justino Mártir, escrevendo por volta de 160 d.C., relata uma discussão com um judeu, Trifo, que chama Jesus de "mago galileu". O filósofo platônico Celso, escrevendo por volta de 175 d.C., afirma que, embora Jesus tenha cresc­ido na Galiléia, trabalhou por algum tempo no Egito, onde aprendeu as técnicas da magia.
Como vimos, os autores dos Evangelhos não consideram vergonhoso nem chocante registrar que os magos prestaram homenagem a Jesus com seu ouro, incenso e mirra. Estes com certeza não eram apenas sábios ou reis, mas membros de uma fraternidade oculta específica que se originou na Pér­sia. E embora alguns comentadores tentem explicar isso como o reconheci­mento simbólico dos feiticeiros da superioridade do jovem Filho de Deus, não há nenhuma indicação de tal interpretação nos próprios Evangelhos, onde a visita dos magos tem a clara intenção de despertar respeito e admiração.
Morton Smith salienta que, embora a história tenha procurado minimi­zar o significado disso, os primeiros cristãos, especialmente os que viviam no Egito, praticavam magia. Alguns dos primeiros artefatos cristãos conhecidos são amuletos mágicos, portando imagens de Jesus e palavras mágicas. A sug­estão é óbvia: a primeira geração de seguidores de Jesus o reconhecia como mago, ou porque sabiam que ele o era ou simplesmente porque ele se en­caixava perfeitamente na descrição de um.
Há, entretanto, um boato muito mais obscuro, corrente na época de Jesus, sobre seu envolvimento com a feitiçaria - boato que não apenas reforça o que está escrito nos textos rabínicos como, se verdadeiro, pode resolver um persistente problema bíblico. Essa acusação bizarra e chocante, que será discutida mais adiante, pode bem conter a chave para grande parte do mistério que envolve o relacionamento entre Jesus e o Batista, e para a possível razão da importância do Batista para os grupos ocultos através dos séculos.

Como já vimos, existem paralelos notáveis entre a vida de Jesus e a história de Osíris. Porém, talvez ainda mais notável é que muitas das palavras de Jesus parecem ter sido retiradas na íntegra da religião egípcia. Por exemp­lo, Jesus disse (João 12:24): "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto." Esse conceito e imaginário indiscutivelmente originam-se no culto de Osíris. E as palavras de Jesus "Na casa de meu Pai há muitas moradas" (João 14:2), que têm intrigado gerações de cristãos, são explicitamente de Osíris e vêm diretamente do Livro dos Mortos egípcio.
Mais apropriadamente chamado de Surgindo à luz do Dia, essa obra contém uma série de fórmulas mágicas com as quais a alma podia vencer os terrores da vida após a morte, e era lida para os agonizantes por um sacer­dote ou sacerdotisa. O fato de Jesus conhecer o livro sugere que ele estava familiarizado não apenas com os textos religiosos do culto de Ísis/Osíris como também com sua magia - e como vimos, religião e magia eram a mesma coisa para os egípcios.
Osíris foi assassinado em uma sexta-feira e seu corpo, esquartejado, foi espalhado por diferentes lugares. Após três dias, ele renasceu, graças à inter­venção mágica de Ísis, que o havia pranteado por toda a terra. Na cerimônia anual do mistério de Osíris no Egito, a alta sacerdotisa que representava Ísis lamentava-se: "Homens maus mataram meu amado, e não sei onde seu corpo está". Quando finalmente ela consegue juntar todas as partes do corpo, diz: "Vê, encontrei-te... ó!, Osíris, vive, levanta-te, ó infeliz que aqui jazes! Eu sou Ísis". O sacerdote que representava Osíris então se levantava e se mostrava a seus seguidores, que expressavam dúvida e assombro ante a milagrosa res­surreição.
Compare a primeira frase com as palavras de Maria Madalena ao "jardi­neiro" (que vem a ser Jesus): "Eles levaram meu senhor e não sei onde o puseram". ("Meu Senhor" eram palavras comuns utilizadas por uma esposa para se referir a seu marido naquela cultura.70) Talvez tenha havido um ritual na tumba no qual Madalena pronunciou as palavras da deusa egípcia, antes de curá-lo de suas feridas. Nos mistérios do Deus Mortal é a deusa quem, com suas ajudantes femininas, vai ao mundo dos mortos para trazer de volta o deus ressurrecto, e o escuro Hades geralmente era representado como uma tumba.
Como, em nossa opinião, Jesus e Madalena estavam vivendo a história da morte e ressurreição de Osíris, a escolha da crucificação fazia total senti­do - pois a cruz era na verdade um antigo símbolo de Osíris.
Foram Maria Madalena e suas companheiras que compareceram ao sepultamento de Jesus, não apenas porque, como se sugere, essa era uma tarefa das mulheres naqueles dias, mas porque estavam conscientemente rep­resentando sua própria parte na história de Osíris. Jesus fazia o papel do Deus Mortal que ressuscitava graças à intervenção, mágica ou de outro tipo, de sua "deusa", sua parceira sexual e espiritual, Maria Madalena. Foi ela quem lhe concedeu o messiado ao ungi-lo ritualmente com óleo de nardo, e se a idéia de que ela era rica for correta, então talvez sua influência tenha tornado possível o rito iniciatório e mágico da crucificação.
Com sua confiança no imaginário de Osíris e seu suposto passado egíp­cio, Jesus pode muito bem ter se submetido voluntariamente ao horror da crucificação, mas por razões um tanto irônicas levando em consideração o modo como ele é visto pelos cristãos. Para estes, Jesus é Deus encarnado, mas ele talvez acreditasse que, por meio da morte e do renascimento sim­bólicos, poderia tornar-se um deus. A crucificação pode muito bem ter sido deliberadamente organizada e preparada, com a ajuda de uma certa quantia de suborno, para que assim Jesus, como Lázaro, pudesse renascer segundo os moldes da escola de mistério de Osíris, ressuscitando na própria figura de Osíris. Tudo isso seria ainda mais provável caso Jesus realmente se consi­derasse pertencente à realeza, descendente de Davi, pois um faraó morto automaticamente tornava-se um Osíris, senhor dos céus e o terror do infer­no, através da mágica intervenção de Ísis. Esperava Jesus emergir da tumba imbuído de poder divino? Talvez a idéia explique um dos mais duradouros mistérios da cristandade - teria ou não Jesus morrido na cruz?
Muitas pessoas acreditam que não. Certos Evangelhos Gnósticos, o Al­corão e alguns dos primeiros cristãos hereges, e talvez o Monastério de Sion, abraçaram a idéia de que um substituto (possivelmente Simão de Cirene) tomou seu lugar, enquanto outros acreditam que ele sofreu na cruz mas de lá foi retirado com vida e que sua "ressurreição" simplesmente é uma referência ao fato de ter sido curado de suas feridas. Leonardo com certeza acreditava que ele fora retirado com vida da cruz: o sangue ainda corre na imagem do homem de seu falso "Santo" Sudário de Turim, e sangue não escorre de um defunto. (Mesmo que nossa tese esteja errada, e Leonardo não tenha falsifica­do o Sudário, quem quer que o tenha feito também acreditava que Jesus não morrera na cruz - e se, contra todas as evidências, trata-se realmente do sudário de Jesus, então isso claramente prova que ele estava vivo na tumba.)
É claro que Jesus pode ter sido acidentalmente retirado da cruz com vida, e que a versão oficial de sua prisão e crucificação seja a que mais se aproxima da verdade. Há, porém, muitos obstáculos lógicos. As tropas de ocupação romanas eram compostas de homens práticos, que tinham muita experiência em torturar e executar. Contudo, afirma-se que eles terminaram as execuções apressadamente naquela sexta-feira - quebrando as pernas dos ladrões crucificados, por exemplo, para que pudessem ser enterrados antes do início do Sabá. Devemos seriamente acreditar que os romanos se preocupavam a tal ponto com os costumes judeus, ou que, se assim fosse, de algum modo esqueceram que o anoitecer da sexta-feira marcaria o final da tortura e crucificação, mesmo que esta tivesse começado apenas algumas horas antes?
A morte pela crucificação era a pior que se poderia imaginar porque, de costume, levava dias para que a vítima morresse. Aí é que está. Sendo as­sim, por que alguém seria colocado na cruz na sexta-feira, na Palestina, dia em que ao pôr-do-sol o crucificado deveria dela ser retirado, vivo ou morto?
Com certeza houve um julgamento e uma crucificação. No entanto, parece que Jesus e seu círculo íntimo - que incluía a "Família de Betânia" ­deliberadamente manobraram os eventos para que pudessem levar a cabo algum plano que haviam armado. Em The Passover Plot, Hugh Schonfield explica, de maneira elegante e persuasiva, como isso aconteceu, mas fracassa ao tentar explicar por que, se Jesus estava tramando para ser o Messias, escol­heria a crucificação, já que tal morte humilhante nunca seria o destino do tão esperado herói judeu.
No entanto, a direção de palco vai além da prisão e crucificação de Jesus. Existem anomalias nos relatos dos Evangelhos que levantam graves suspeitas. O tempo de duração da crucificação de Jesus, como vimos, foi no­tavelmente curto, e também nos dizem que, embora os ladrões tenham rece­bido o golpe de misericórdia dos soldados romanos para que morressem antes do Sabá, Jesus simplesmente lhes prestou o favor de morrer antes de o sol se pôr. Muitas pessoas chegaram a sugerir que algum tipo de droga, um poderoso narcótico, pode ter sido dado a Jesus na esponja enquanto ele estava na cruz, conferindo-lhe uma aparência de morte. Nesse caso, deve-se presumir que os conspiradores subornaram os guardas para que olhassem para o outro lado. Essas pistas sugerem que a conspiração essencialmente significou a monta­gem de uma representação muito cínica: a crucificação era o modo mais pú­blico de anunciar uma morte, e, tendo esta ocorrido, qualquer aparente re­torno à vida seria considerado miraculoso.
A própria natureza desses arranjos revela por que deviam ser os ro­manos, não os judeus, a prender e sentenciar Jesus. Se os judeus o achassem culpado, ele seria apedrejado, e então seria impossível forjar sua morte.
Mas o que os conspiradores esperavam obter por meio desse elabo­rado, e arriscado, subterfúgio? Afinal, como vimos, um criminoso crucificado nunca seria aceito como o Messias: os judeus não esperavam que seu Messias fosse crucificado, nem que ele retornasse dentre os mortos. Essa interpretação de suas expectativas simplesmente não existia.
O plano, portanto, não se encaixava nos moldes da tradição judaica. No entanto, conformava com um conceito não-judaico - o do deus morto-ressur­recto, que era o fundamento dos grandes cultos das escolas de mistério. Os judeus não tinham nada disso: para eles havia apenas um deus e era inconcebível que ele fizesse parte de um culto sanguinolento, pois consideravam qualquer coisa relacionada com sangue e sepultura como impura e abom­inável. Contudo, o Oriente Médio e os países do Mediterrâneo estavam reple­tos de cultos de adoração a tais deidades.
Deixemos claro mais uma vez que a história da morte e ressurreição de Jesus não era um caso isolado e único. No contexto da proliferação dos cul­tos aos deuses mortais da época, ele estava obviamente tentando vincular-se a um deles. Qual seria? E o que ele esperava ganhar com esse doloroso e perigoso plano?
Conforme vimos, a súplica de Jesus na cruz pode ser interpretada como sendo Helios! Helios! (Ó, Sol! Ó, Sol!). A morte de Osíris é tradicionalmente representada como um sol negro, em outras palavras, o desamparo da Luz, que também poderia ser deduzido da frase de Jesus na cruz "Ó, Sol! Ó, Sol! Por que me abandonaste?"
Parece que Jesus estava de algum modo vivenciando toda a história de Osíris naquela remota sexta-feira.

Existem muitas perguntas sem resposta em torno da ressurreição, admi­tindo que a idéia cristã de morte e ressurreição literais de Jesus esteja errada. Por exemplo, em que estado ele se encontrava quando foi retirado da cruz ­estaria em coma na tumba, ou simplesmente machucado, porém consciente? O que então aconteceu a ele? Teria, como sugerem alguns, deixado a Palesti­na e viajado para lugares longínquos, como a Índia? E o que aconteceu com seu relacionamento com Madalena, já que ela aparentemente rumou para a Gália sem ele? Qualquer que seja a verdade sobre esse assunto, o Jesus dos Evangelhos desaparece da história após sua suposta ressurreição.
Essencialmente, os Evangelhos desintegram-se após a descoberta da tumba vazia. Os relatos do Novo Testamento da aparição de Jesus aos seus discípulos e a suposta ascensão aos céus são desesperadamente confusos, inconsistentes até mesmo como mitos. É claro que os não cristãos lançam mão dessas intricadas histórias para provar que foram forjadas, e certamente concordaríamos com eles. No entanto, apesar da confusão, como observa Hugh Schonfield, uma das fontes pode ser claramente identificada: o encon­tro de Jesus ressuscitado com dois discípulos no caminho para Emaús foi extraído da obra de Lúcio Apuleio inspirada em Ísis, The Golden Ass.
Embora o conceito de uma futura ressurreição do corpo faça parte da crença judaica, o que aconteceu quando Jesus supostamente renasceu não se conforma decerto com o pensamento judaico.A visão tradicional é a de que todos os justos ressurgirão juntos no final dos tempos: Jesus aparentemente desafiou esse plano, sendo trazido de volta à vida enquanto seus colegas ainda se decompunham nos túmulos. Em seguida, ele ascendeu aos céus, sem deixar nenhum vestígio de seu corpo, embora tivesse prometido que seu ser espiritu­al estaria prontamente disponível aos seus seguidores - na verdade, essa presença espiritual contínua foi uma das principais razões pelas quais a flores­cente religião cristã mostrou-se tão atrativa para o mundo romano e tem ain­da hoje tal influência sobre milhões de corações e mentes.
Como assinala Karl Luckert, os comentadores contemporâneos, embo­ra reconheçam que esse conceito da contínua presença espiritual de Jesus não seja judaico, não fornecem nenhuma idéia sobre seu verdadeiro contex­to e origem. Então de onde terá vindo tal conceito?
A análise erudita de Luckert mostra conclusivamente que os concei­tos gêmeos da ressurreição de Jesus e de sua presença espiritual contínua remontam sem qualquer sombra de dúvida à teologia egípcia. Ele esclarece que a antiga teologia egípcia:

...tornou possível acreditar que o Filho de Deus ressuscitou dos mortos... e assim retornou ao Pai. E explica também por que, antes que ele ascendesse aos céus, aparições de Cristo foram vistas... Também em consonância com a lógica egípcia era a noção de que, mesmo tendo Cristo Jesus retornado ao Pai, ele não obstante permanece eternamente entre seus seguidores.

Mais uma vez, vemos que conceitos fundamentais para a religião cristã - e que há muito tempo vêm sendo acalentados como prova da singularidade e divindade de Jesus - não brotaram totalmente de sua vida e ensinamentos. Nem eram fruto do tipo de judaísmo herético a que freqüentemente se recorre para explicar sua gênese.
O conceito de ressurreição individual e de vida eterna do espírito no mundo do além veio do Egito, onde era aceito como um fato consumado. E a noção da presença contínua e reconfortante do espírito após a morte foi diretamente tirada das crenças que envolviam a morte dos faraós, os quais, segundo se acreditava, guiavam as pessoas desde o mundo invisível.

Vimos que os eventos cruciais da vida de Jesus parecem se amoldar à história de Osíris, e que o papel de sua companheira, Maria Madalena, era extremamente semelhante ao de Ísis. No entanto, há um outro ponto impor­tante a ser observado nesse contexto.
Embora o arquétipo de Osíris claramente se encaixe no papel cons­cientemente desempenhado por Jesus - ao "morrer" na sexta-feira, ser pran­teado por "Ísis" e voltar à vida três dias depois -, é a magia da deusa que torna a ressurreição possível. Que o papel dela não era secundário é mais do que óbvio.
Ísis era vista como o Criador, conforme relatam as escrituras egípcias: "No início havia Ísis, a mais Antiga entre os Antigos". Ela era a deusa "da qual tudo nasceu", e a tradição invoca: "...tu és a criadora de todas as coisas boas". E, ainda mais do que isso, Ísis, não Osíris, era o salvador original, sendo descrita por Aristides, um iniciado nos mistérios da deusa, como "uma Luz, e outras coisas impronunciáveis, conduzindo à salvação", enquanto Lúcio Apuleio se dirige a ela nestes termos: "Ó Santa e eterna Salvadora da raça humana... tu dás luz ao Sol.Tu esmagas a morte sob teus pés".
Os estudiosos aceitam que os primeiros cristãos absorveram em seu movimento certos aspectos do culto de Ísis, tais como o conceito de que a crença na deusa levava à vida eterna. Também se apropriaram de muitos tem­plos dedicados a ela. Um deles ficava em Sais, uma antiga capital do Egito, que se tornou uma igreja da Virgem Maria no século III. Mil anos antes, quan­do ainda era um templo da grande deusa Ísis, tinha a seguinte inscrição "Eu sou tudo o que era, o que é, e o que há de vir" - palavras que muito tempo depois apareceram nas páginas do Livro da Revelação (1:8) como sendo de Jeová.
A influência do culto de Ísis pode ser facilmente encontrada até mes­mo nos Evangelhos canônicos. Por exemplo, um dos ditos mais famosos de Jesus é "Vinde a mim os que sofrem, que eu os consolarei" . Em razão da oferta de consolo e amor em meio à luta pela vida, com freqüência encontramos essas palavras em cartazes colocados no lado de fora das igrejas, antecedidas pela frase: "Jesus disse". De fato, essa frase, palavra por palavra, foi extraída inteiramente dos ditos de Ísis, podendo ser vista na inscrição sobre a porta de um tempo dedicado a ela em Dendera. De qualquer modo, o socorro oferecido na sentença é, com certeza, o de uma mãe.
Se, como acreditamos, Jesus e Maria Madalena eram iniciados nos mis­térios de Ísis e Osíris, então o "cristianismo" deve ter sido muito diferente da religião patriarcal, temente a Deus, em que logo se converteu. E seu passado essencialmente pagão finalmente lança alguma luz sobre alguns dos enigmas mais persistentes do Novo Testamento.
O dilema básico sempre foi tentar conciliar a existência de um Jesus histórico com os evidentes elementos da escola de mistério egípcia presentes nas histórias a ele relacionadas. Como resultado direto dessa questão, os co­mentadores tomaram um desses dois caminhos: ou, como Ahmed Osman, che­garam à conclusão de que Jesus não existiu, ou, como A. N.Wilson, sustentam que as referências à escola de mistério nunca fizeram parte da história origi­nal, tendo sido acrescentadas posteriormente.
Entretanto, esses dois elementos aparentemente irreconciliáveis po­dem, como temos demonstrado, fazer sentido quando tomados em conjunto. O pressuposto de que Jesus era de religião judaica é o que tem impedido que se reconheça uma solução clara e simples para essa questão. Se, por outro lado, sua religião não pertencesse à tradição judaica, tudo se encaixaria em seu devido lugar.
Não significa dizer que os discípulos de Jesus não eram judeus, ou que ele não estava deliberadamente se dirigindo ao povo judeu em sua campa­nha. No entanto, como vimos, é evidente que havia um grupo de "manipu­ladores" por trás do movimento, parte dos quais era quase com certeza a "família de Betânia".
O movimento de Jesus compreendia um círculo interno e um círculo externo, as versões esotérica e exotérica do culto. Ironicamente, a maioria dos discípulos e as fontes que deram origem aos Evangelhos faziam parte do último, o grupo que Jesus deliberadamente manteve na ignorância sobre sua verdadeira agenda e mensagem. Por mais radical e estranho que possa pare­cer, é essa precisamente a situação retratada repetidas vezes nos Evangelhos - nos quais discípulos como Pedro com freqüência confessam estar total­mente perplexos sobre os ensinamentos e as intenções de Jesus. Ainda mais crucial, o círculo externo de discípulos não tinha certeza sobre as ambições de Jesus e mesmo sobre seu verdadeiro papel.
Os estudiosos confessam-se aturdidos com respeito a uma questão que é básica: por que, dentre todos os cultos messiânicos daquela época e lugar, foi o cristianismo que sobreviveu e prosperou. Como vimos, a razão que levou o movimento de Jesus a ter sido praticamente o único grupo a conquistar terreno duradouro fora da Judéia, foi o fato de já ser reconhecido como um culto de mistério. O segredo de seu apelo era sua característica essencial­mente híbrida, uma mistura de certos aspectos do judaísmo e de elementos pagãos das escolas de mistério. O cristianismo era singular por ser reconfor­tantemente familiar para muitos judeus e também para os gentios, ao mesmo tempo ser excitantemente diferente.
O cristianismo, como uma nova religião, foi fruto da dinâmica que lhe imprimiram os conversos de várias etnias e religiões, com freqüência contra­ditórios, em seu esforço para dar sentido a seus próprios elementos individ­uais dentro do novo híbrido. Os seguidores constantemente enfrentavam o desafio de tentar encaixar o arquétipo do deus morto-ressurrecto no molde clássico do Messias e vice-versa, e foi essa mistura impossível que se tornou a Igreja Cristã.
É claro que muitos podem contestar o passado egípcio do cristianis­mo, visto o tom predominantemente judaico dos Evangelhos. Podem alegar, com razão, que essa é a única evidência que temos acerca da natureza dos primórdios da religião - evidência que certamente indica sua origem judaica. Entretanto, o Novo Testamento não contém a única evidência disponível, embora os textos sejam exatamente aqueles que a Igreja escolheu tornar públicos. Como já vimos, a maior parte da obra conhecida coletivamente como Evangelhos Gnósticos foi deliberadamente negada aos cristãos por muitos séculos - e o quadro que pintam do início do cristianismo não é, com certeza, o de uma seita resultante de um cisma do judaísmo. O que os Evange­lhos Gnósticos descrevem é uma escola de mistério egípcia.
Estudiosos como Jean Doresse - em seu estudo sobre os textos do Nag Hammadi - reconhecem a ampla influência da teologia egípcia nos Evange­lhos Gnósticos. Várias vezes encontramos, nesses Evangelhos por tanto tem­po ignorados, conceitos que são obviamente egípcios. Isso é mais notável no Pistis Sophia, cuja cosmologia corresponde à do Livro dos Mortos egípcio. Os Evangelhos Gnósticos empregam inclusive a mesma terminologia: por exem­plo, utilizam a palavra egípcia para "inferno", Amente.
Por séculos, os cristãos aceitaram que os Evangelhos do Novo Testa­mento estão "certos" - tanto do ponto de vista histórico quanto espiritual ­enquanto os livros Gnósticos estão " errados". Acreditam que Mateus, Marcos, Lucas e João foram divinamente inspirados, ao passo que os outros (se che­gam a ser conhecidos) são considerados absurdos. No entanto, como temos esperança de demonstrar, existem razões que nos impelem a pensar que as obras gnósticas merecem, no mínimo, a mesma atenção.
Os Evangelhos Gnósticos foram rejeitados pelos patriarcas da Igreja por razões de auto-preservação, pois esses textos apresentavam uma imagem muito diferente do cristianismo, imagem que não lhes interessava apoiar. Não apenas os livros suprimidos tendem a enfatizar a importância de Maria Madalena (e de outras mulheres discípulas), como também apresentam uma re­ligião que tinha raízes, ao contrário daquela do Novo Testamento, na teologia egípcia. O cristianismo não pretendia ser nem um patriarcado nem um desdo­bramento, ainda que herético, do judaísmo. Não se nega que os Evangelhos do Novo Testamento foram escritos pelos seguidores judeus de Jesus, mas, ironicamente, estes parecem ser os que menos entenderam o que ele repre­sentava, os que tentaram explicá-lo a partir de seu próprio contexto cultural e religioso. Por outro lado, parece que os Evangelhos Gnósticos apresentam um quadro mais autêntico das origens de sua religião e mesmo do próprio passado e das crenças de Jesus.
Permanece porém a questão: o que Jesus e seu círculo interno espe­ravam ganhar ao disseminar uma mensagem essencialmente pagã no berço do judaísmo?

A religião original dos hebreus, como a de outras culturas antigas, era politeísta, venerando tanto deuses quanto deusas. Apenas mais tarde Jeová surge como uma deidade preeminente, e os sacerdotes efetivamente reescre­veram sua história para eliminar, de modo não muito compreensível, a antiga adoração às deusas. (E, como resultado, a condição das mulheres declinou abruptamente, assim como no início do cristianismo e pela mesma razão.)
Raphael Patai, antropólogo húngaro e estudioso da Bíblia, em seu prin­cipal trabalho The Hebrew Goddess, demonstrou conclusivamente que os judeus outrora adoravam deidades femininas. Dentre os muitos exemplos que cita dos cultos hebreus a deusas, está aquele relacionado com o Templo de Salomão: apesar da tradição, este não foi construído para honrar apenas e tão somente Jeová, mas também para celebrar a deusa Asherah. Patai diz:

...a adoração de Asherah como consorte de Jeová... era um elemento integrante da vida religiosa da antiga Israel, anterior às reformas introduzidas pelo rei Josias em 621 a.C.
O Templo de Salomão foi construído nos moldes dos templos dos fení­cios, que por sua vez tiveram como modelo os templos do antigo Egito. E muitos estudiosos acreditam que as imagens gravadas na Arca da Aliança na verdade retratam Jeová e uma deidade feminina. Os querubins que aparecem na Arca também eram imagens da deusa - os entalhes de dois "querubins" encontrados no palácio do rei Ahab, na Samaria, são idênticos às clássicas representações de Ísis.

Os cultos heréticos judaicos de adoração a deusas continuaram a pros­perar em muitas regiões, sobretudo no Egito.Mesmo na corrente principal do judaísmo a deusa sobreviveu "disfarçada" de dois modos. Uma é a perso­nificação de Israel como uma mulher; a outra, a figura da Sabedoria ­Chokmah, em hebreu, ou Sophia, em grego. Embora geralmente descrita como uma alegoria para a sabedoria divina de Deus, é claro que Chokmah tem um outro significado: a sabedoria é retratada como se fosse feminina e coexis­tisse com Jeová desde o início.
Admite-se hoje que essa imagem tem origem nas deusas de culturas vizinhas. Em particular, Burton L. Mack revelou a influência das deusas egíp­cias Ma'at e Ísis.
Na época de Jesus o judaísmo ainda não havia perdido completamente suas origens pagãs: de qualquer modo, os judeus se converteram para re­ligiões estrangeiras durante os períodos da dominação greco-romana - por exemplo, a Revolta dos Macabeus na metade do século II a. C. foi causada, em grande parte, pela ruptura dos judeus apóstatas que veneravam, entre outros deuses, Dioniso.
O elemento pagão de veneração às deusas do judaísmo herético pode explicar muita coisa em relação a Jesus, seus motivos e sua missão. Sem o levar em conta, o que existe é uma evidente contradição: embora pratica­mente tudo o que Jesus disse, se tomado isoladamente, remonte a uma escola de mistério - a de Ísis e/ou Osíris, como é mais provável -, há no entanto evidências de que ele conscientemente representou o papel de Messias dos judeus e de que a maioria das pessoas que o seguia acreditava que ele fosse seu rei. Mesmo os mais respeitados eruditos na matéria rejeitaram por com­pleto o material messiânico quando este deixou de se encaixar em suas hipóteses: se eles estão corretos em fazer isso, então Jesus era certamente iniciado em alguma escola de mistério. Para nós, porém, rejeitar esse material é insatisfatório, pois significaria que muitos dos episódios dos Evangelhos ­tais como a entrada de Jesus em Jerusalém em um jumento - foram pura invenção. Embora haja alguma ficção demonstrável nos Evangelhos (princi­palmente no que se refere à infância de Jesus), há uma evidência persuasiva de que esses episódios em particular são autênticos. Como vimos no Capítu­lo Onze, os eventos que culminaram com a chegada triunfal de Jesus em Jerusalém parecem ter sido pré-arranjados - como, por exemplo, o jumento no qual Jesus montaria a fim de cumprir as profecias sobre o Messias. A evi­dência desses preparativos encontra-se nos próprios relatos evangélicos, embora esteja claro que os autores não compreendem seu significado. Se eles tivessem inventado esse episódio, com certeza não teriam plantado tal evidência.
Então, quais eram os reais motivos e metas de Jesus? Pode ser que ele estivesse utilizando a mania de messianismo corrente na época a fim de re­introduzir o culto às deusas - afinal, mesmo que ele pertencesse, como se afirmava, à linhagem real de Davi, isso dificilmente seria um obstáculo, pois o próprio rei Davi venerava deusas, assim como o rei Salomão. Talvez Jesus fosse um sacerdote de Ísis tentando apresentar uma versão aceitável da re­ligião de Ísis/Osíris aos judeus, ou usar o anseio por um Messias para planos mais secretos e de longo prazo, que envolviam iniciações esotéricas e culmi­navam talvez com a crucificação. E, como "Jesus Nazoreano" , ele era parte de uma primitiva "família" de seitas heréticas judaicas que, segundo se acredita, foram transmitidas na forma original da religião. Podemos apenas especular sobre a natureza das crença nazoreanas, mas, no que diz respeito a Jesus, elas claramente correspondiam a suas convicções esotéricas. Qualquer que seja a verdade sobre a questão, Jesus não só era Filho de Deus mas também um devotado Filho da Deusa.
A idéia de que Jesus estava tentando reintroduzir o culto às deusas entre o povo de Israel se encaixa de forma admirável no caso. Essa é precisa­mente a idéia atribuída a Jesus no Levitikon, o texto chave do movimento joanita. Segundo ele, Jesus é um iniciado em Osíris que percebe que a re­ligião original de Moisés e das tribos de Israel era a do Egito e que os judeus tinham esquecido que havia também uma deusa. É claro que nada disso cons­titui prova definitiva, mas há, como veremos no próximo capítulo, um forte apoio a essa hipótese por parte de alguns setores surpreendentes.

Por mais chocante que possa parecer hoje em dia, as similaridades en­tre o cristianismo primitivo e o culto de Ísis e Osíris eram na verdade recon­hecidas pela Igreja dos primeiros tempos. De fato, as duas religiões compe­tiam abertamente pelos corações e espíritos do mesmo povo; exceto pela insistência dos cristãos em que seu fundador havia sido um homem de carne e osso, suas doutrinas eram praticamente idênticas.
O culto de Ísis que existia na época de Jesus não era exatamente o mesmo que florescera no Egito antes da ascensão do império helenístico ­os atributos da deusa mudaram quando ela absorveu características de ou­tras deusas. No século IV a. C., durante o domínio dos gregos no Egito, surgiu um novo culto a Ísis e Serápis (a forma grega de Osíris), que era essencial­mente uma mistura das diferentes escolas de mistério. Esse culto chegou a Roma antes de 200 a. C., depois de cruzar todo o império. O principal centro de culto, entretanto, permanecia no Egito, no Serapeum em Alexandria, em­bora houvesse outro centro em Delos.
As classes mais baixas de Roma acolheram o culto de Ísis com todo o entusiasmo. Tais movimentos de massa eram sempre tratados com suspeita pelas autoridades, que viam neles o potencial para uma subversão em larga escala; assim, os seguidores de culto em Roma sofriam freqüentes perse­guições. Finalmente, o senado ordenou a destruição dos templos de Ísis e Serápis; porém, apesar de estarem plenamente cientes das conseqüências, não foi possível encontrar quem quisesse realizar o trabalho. O culto foi ofi­cialmente abolido por Júlio César.
Entretanto, no ano de 43 a. C., o triunvirato inesperadamente ordenou a construção de um novo templo de Ísis-Serápis. Tal ordem pode ter sido resultado direto da notória ligação entre Marco Antônio e Cleópatra, que muitas vezes era retratada como a própria Ísis, e seu amante como Osíris ou Dioniso. O próprio Marco Antônio gostava de ser conhecido como o Novo Dioniso. Durante seu reinado, Cleópatra manteve o culto de Ísis como a re­ligião nacional do Egito.
A perseguição mais severa aos seguidores de Ísis em Roma aconteceu no império de Tibério, em 19 a.C., quando seus sacerdotes foram crucifica­dos e 4.000 devotos exilados. Essa perseguição coincidiu com a dos judeus. A razão para essa exagerada reação dupla, contudo, é pouco clara.Josefo regis­tra o episódio e o atribui a um escândalo envolvendo um dos sacerdotes de Ísis, que teria ajudado um nobre romano a seduzir a mulher de outro homem no templo da deusa; porém, pelos tradicionais padrões morais da alta socie­dade romana, tal fato dificilmente provocaria sequer um bocejo. Parece que Josefo estava tentando marcar uma distinção entre a perseguição dos segui­dores de Ísis e a dos judeus, mas a verdadeira razão, ao que parece, é que aqueles se envolveram em agitações civis.
Algo incomum estava acontecendo com a religião de Ísis na época. Como diz R. Merkelbach, em Man, Myth & Magic:

Está claro que a "igreja" de Ísis tinha uma "missão" durante o período imperial... Não há, portanto, qualquer dúvida de que a propaganda estava se espalhando.

No primeiro século da era cristã, o culto teve a boa sorte de obter algum apoio entre as classes mais altas e mesmo entre os imperadores. Calígula - que dificilmente, no entanto, poderia ser tido como um bom exemplo ­promoveu a construção de templos e instituiu o festival de Ísis. Cláudio e Nero eram ambos atraídos pelos cultos de mistério de modo geral e expres­saram particular interesse pelo de Ísis. Muitos dos últimos imperadores ro­manos eram devotos.
A veneração a Ísis continuou pública até o final do século IV, mas seu grande rival foi o cristianismo. Em 391 os cristãos destruíram o Serapeum de Alexandria e tomaram medidas para suprimir o culto onde quer que ele fosse encontrado. O último festival oficial de Ísis dos velhos tempos foi celebrado em Roma em 394.
Por que o culto de Ísis era tão popular? O que ele tinha a oferecer aos seus seguidores?
Como já vimos, estava relacionado com a salvação e redenção individu­al e fornecia aos seus devotos as bênçãos de uma vida eterna após a morte. Como diz Sharon Kelly Heryob em sua obra The Cult of Isis among Women in the Graeco-Roman World (1975):

Ísis finalmente tornou-se uma deusa salvadora no sentido preciso da palavra: a redenção individual podia ser alcançada pela participação em seus mistérios. A crença de que se podia obter imortalidade foi a mais persistente de suas doutrinas.

Enquanto Merkelbach diz, do culto de Ísis:

Era popular porque apelava ao desejo de salvação individual (como o cristianismo), e as idéias da filosofia platônica tornaram-se associadas com ele [também com o cristianismo].
Os pecados eram confessados e perdoados pela imersão na água...

S.G.F. Brandon enfatiza que os dois conceitos - imersão para simboli­zar a purificação espiritual e a conseqüente regeneração - foram reunidos no Egito nos rituais da escola de mistério de Osíris, e que:

Esse processo duplo para se alcançar a bênção da imortalidade não é encontrado novamente até a emergência do cristianismo.

Realmente, existem paralelos próximos entre a descrição do batismo que Paulo oferece e o das escolas de mistério de Osíris.
Como no cristianismo, a salvação pessoal do devoto estava vinculada ao seu arrependimento. De fato, no mundo romano, apenas essas duas re­ligiões compartilhavam tal ênfase no arrependimento.
Há uma outra semelhança notável - e singular - entre as práticas do culto de Ísis e o posterior cristianismo católico. Era o conceito de confissão: o devoto admitia ter cometido erros ao sacerdote, que então rogava a Ísis em seu favor para que fosse perdoado.
Um outro costume que a igreja em seus primórdios compartilhava com os seguidores de Ísis - apesar da errônea concepção atual - era o papel ativo da mulher, embora algumas estimativas sugiram que em ambos os casos havia mais sacerdotes que sacerdotisas. Mesmo assim, em termos de participação e status espiritual os sexos eram considerados em igual­dade.
O culto de Ísis geralmente enfatizava o aspecto maternal da deusa, celebrando seus atributos como esposa e mãe, embora não negligenciasse os outros aspectos da natureza feminina. Conseqüentemente, como vimos, a trin­dade familiar de Ísis, Osíris e Hórus exercia uma poderosa influência na vida familiar dos devotos: homens, mulheres e crianças sentiam-se compreendi­dos por seus deuses. Os leigos em geral representavam um papel muito ativo na religião - ao contrário do controle total exercido pelos sacerdotes de Roma -, e havia muitas associações "laicas" ligadas aos templos.
Sexualmente, os seguidores de Ísis eram encorajados à monogamia e a preservar a santidade da família. E embora muitos autores romanos os acusas­sem de comportamento imoral, eles próprios se queixavam dos períodos reg­ulares de abstenção sexual a que tinham de se submeter as mulheres devotas de Ísis.
No apogeu da religião egípcia, a maior celebração de Ísis acontecia em 25 de dezembro, quando se comemorava o nascimento de seu filho Hórus ­e então, doze dias depois, em 6 de janeiro, o de seu outro filho, Aion. As duas datas foram tomadas pelos cristãos - a Igreja Ortodoxa celebra o Natal em 6 de janeiro. No Egito, os cristãos do século IV celebravam a epifania de Jesus nesse dia, adotando também elementos do festival de Aion, entre eles o ritual do batismo utilizando a água do rio Nilo. Em Man, Myth & Magic, S.G.F. Bran­don comenta a "evidente influência do festival de Ísis nos costumes populares do cristianismo associados com a Epifania".
Entretanto, muitos cultos de mistério da época de Jesus envolviam práti­cas semelhantes. Por exemplo, eles comumente declaravam que seus inicia­dos haviam "nascido de novo", e, como diz Marvin W. Meyer em sua obra The Ancient Mysteries:

Geralmente, os mystai [iniciados] partilhavam a comida e a bebida nas celebrações rituais e, algumas vezes, tornavam-se um com o divino pela participação numa refeição sacramental análoga à da Eucaristia cristã. As loucas mênades de Dioniso, por exemplo, segundo diziam, tinham que devorar carne crua de algum animal em sua omophagia, ou banquete da carne... as descrições do banquete de carne crua sugerem que os participantes acreditavam estar consumindo o próprio deus... Nos mistérios de Mitra, os iniciados partilhavam de uma cerimônia que lembrava a "Última Ceia" dos cristãos, o que provocou certo embaraço no apologista cristão Justino Mártir. De acordo com Justino, os mystai do mitraísmo comiam pão e bebiam água (talvez uma mistura de água e vinho) na refeição iniciatória - uma diabólica imitação, ele se apressa em dizer, da eucaristia cristã.

Contudo, não importa o grau de semelhança que outros cultos de misté­rio parecem ter com os primórdios do cristianismo e com os ensinamentos de Jesus; é o de Osíris, como vimos, que na verdade constitui sua inspiração mais direta. S.G.F. Brandon descreve Osíris como um "protótipo de Cristo".
A história do início da Igreja no Egito é muito sugestiva no que diz res­peito às semelhanças entre o cristianismo e a escola de mistério de Ísis/Osíris. Os historiadores reconhecem que há um grande mistério sobre as origens e o desenvolvimento do cristianismo no Egito: a única coisa de que eles têm certe­za é que havia ali um ramo muito precoce do movimento. De fato, para uma metrópole tão grande e influente, Alexandria é praticamente ignorada pelos autores do Novo Testamento, sendo mencionada apenas uma vez. (A referên­cia, porém, como veremos, tem um significado especial para essa investigação.) Há também uma completa ausência de registros escritos sobre a Igreja até o século III: os estudiosos dizem que isso se deve a uma destruição total dos arquivos pela facção cristã dominante. Com certeza, havia algo abominável sobre o ramo egípcio do movimento. Talvez uma pista sobre sua natureza este­ja implícita no fato de que quando o Serapeum foi destruído, em 391, muitos devotos se bandearam para a Igreja Cristã Copta (egípcia).
A Igreja Copta permaneceu uma entidade distinta, independente da Igreja de Roma ou da Igreja Ortodoxa Oriental. Significativamente, suas dou­trinas são uma óbvia mistura das crenças egípcias tradicionais e cristãs, e as duas foram assimiladas com extraordinária facilidade. Após 391 a Igreja Copta adotou como símbolo o ankh - a cruz laçada egípcia -, e ainda o utiliza hoje em dia. Mircea Eliade afirma claramente: "Os coptas consideravam-se os ver­dadeiros descendentes dos antigos egípcios".
Isto aconteceu na mesma época e no mesmo lugar em que tantas partes essenciais de nosso quebra-cabeça foram criados. A Alexandria daquela época foi o cadinho no qual se operou a síntese de grande parte do conhecimento e de muitas das idéias que viriam a formar o hermetismo, o gnosticismo dos textos de Nag Hammadi e a alquimia em seu formato "moderno". Estes eram, em essência, expressões da mesma ênfase no poder transcendental do Femi­nino e na mágica fusão da deusa com seu deus.

O lado triste disso é que, embora todas as ligações entre o cristianismo e a religião de Ísis/Osíris sejam muito bem conhecidas pelos eruditos, já há pelo menos sessenta anos, poucos cristãos sabem delas. É claro que podem não dar a menor importância ao fato de Jesus pertencer a uma longa linha­gem de salvadores, de deuses mortos-ressurrectos, pois para eles a fé é mais importante do que um fato histórico. Por outro lado, muitos cristãos de hoje sentiram-se completamente enganados pela Igreja quando descobriram es­sas coisas por si mesmos.
O cristianismo não era a religião fundada pelo único Filho de Deus que morrera para expiar todos nossos os pecados: era o culto a Ísis e Osíris com outra roupagem. Entretanto, logo se tornou um culto à personalidade, centra­do em Jesus.
Porém, se ele era essencialmente um missionário egípcio, estaria ape­nas trabalhando em benefício de seus deuses? Seria suficiente para Jesus che­gar aos corações e almas das multidões? Está faltando algo nesse quadro, algo que é fundamental para nosso entendimento tanto do homem quanto de sua missão. Jesus claramente também visava um objetivo terreno: havia uma agenda política que corria em paralelo com suas ambições de converter as pessoas ao culto de Ísis/Osíris. Não por acaso ele foi um líder proeminente que levou sua mensagem a muitas regiões da Palestina, alcançando tantas pessoas quan­to foi possível. Naquela época e lugar a política e a religião eram insepa­ráveis. Se você fosse um grande líder religioso automaticamente era também uma influência política nada desprezível.
Entretanto, toda campanha com interesses tão altos inevitavelmente apresenta grandes desafios para sua liderança; surgem as vozes dissidentes. Nesse caso a voz era de alguém que havia chegado antes, que era ouvida clamando no deserto. E é para essa voz, para João Batista, que nos voltamos agora.
Na Parte Um identificamos as duas correntes principais, centradas em Maria Madalena e João Batista, que corriam, como riachos subterrâneos, por todas as heresias que investigamos. E ambas as correntes escondiam certo conhecimento poderoso e perigoso, algo que ameaçaria as próprias fundações da Igreja se fosse tornado público. No caso de Maria Madalena, nossa investi­gação demonstrou com certeza que isto é verdadeiro. E ela agora é a chave-­mestra para revelar os próprios segredos de Jesus, há tanto tempo escondi­dos. Através dela finalmente podemos ver que ele era um sacerdote da religião egípcia, um adepto da magia que ela iniciara pelo ritual do sexo sagrado. É isto que o culto herético da Madalena realmente significa e o que ele efetiva­mente representou para várias gerações de hereges. Madalena não era apenas a representante da tradição pagã à qual ela e Jesus pertenciam; para a maioria dos movimentos heréticos secretos, Maria Madalena era a deusa Ísis.
Mas os hereges também mantinham uma outra corrente secreta próxi­ma de seus corações, e esta era incorporada e codificada na figura de João Batista. E assim como Madalena, ele foi um personagem real que conheceu e interagiu com Jesus. Então, que revelações ele tem a nos oferecer?