9.11.2017
CAPÍTULO XVII
De Dentro do Egito
Dois mil anos depois de Jesus, João e Maria terem passado suas vidas peculiarmente significativas em um lugar remoto do Império Romano, milhões de pessoas ainda acreditam na história que é contada nos Evangelhos. Para elas, Jesus era o Filho de Deus e de uma virgem, e por acaso encarnou como judeu; João Batista foi seu precursor e era espiritualmente inferior a ele; e Maria Madalena era uma mulher de reputação duvidosa a quem Jesus curou e converteu.
Entretanto, nossa investigação revelou um quadro muito diferente. Jesus não era o Filho de Deus, nem de religião judaica, embora etnicamente possa ter sido judeu. As evidências indicam que sua pregação continha uma mensagem que não era originária do território onde montou sua campanha e deu início à sua missão. Com certeza seus contemporâneos achavam que ele era um adepto da magia egípcia, uma visão que também está expressa no Talmude.
Pode ser que isso não passe de um boato malicioso, mas muitos estudiosos, principalmente Morton Smith, concordam em que os milagres de Jesus faziam parte do repertório típico da magia egípcia. Além disso, ele foi entregue a Pilatos sob a acusação de ser um "malfeitor" - o que, na lei romana, significava especificamente ser um feiticeiro.
João não reconheceu Jesus como o Messias. É provável que o tenha batizado, porque Jesus era um dos seus discípulos e talvez até mesmo tenha chegado a ser seu lugar-tenente. Alguma coisa deu errado, entretanto: João mudou de idéia e nomeou Simão Mago como seu sucessor. Pouco tempo depois João foi executado.
Maria Madalena era uma sacerdotisa e foi a parceira de Jesus em um casamento sagrado, exatamente como era Helena para Simão Mago.A natureza sexual de sua relação é atestada em muitos dos textos gnósticos que a Igreja proibiu de serem incluídos no Novo Testamento. Ela era também a "Apóstola dos Apóstolos" e uma pregadora de renome, chegando mesmo a reunir o grupo dos desalentados discípulos após a crucificação. Simão Pedro a odiava, assim como a todas as mulheres, e é provável que ela tenha ido para a França após a crucificação, porque temia o que ele lhe poderia fazer. E embora seja impossível saber exatamente qual era a sua mensagem, é certo que devia ter pouca relação com o que hoje se conhece como cristianismo. Maria Madalena pode ter sido qualquer coisa mas com certeza não era uma pregadora cristã.
A influência egípcia na história dos Evangelhos é inegável: Jesus pode muito bem ter conscientemente desempenhado o papel do Messias judeu a fim de obter apoio popular, mas ele e Maria parecem também ter encenado o mito de Osíris e Ísis, provavelmente com propósitos iniciatórios.
A magia egípcia e os segredos esotéricos estavam por trás de sua missão, e seu mestre foi João Batista. Dois dos discípulos de João - seu sucessor Simão Mago e a ex-prostituta Helena - faziam um paralelo exato com Jesus e a Madalena. Provavelmente era assim que deveria ser. O conhecimento subjacente era sexual - aquele do horasis, da iluminação através do sexo transcendental com uma sacerdotisa, que era um conceito difundido no Oriente e também no Egito.
Apesar das afirmações da Igreja, não era Pedro o aliado mais próximo de Jesus, nem, a julgar por suas repetidas dificuldades em compreender as palavras de seu mestre, fazia ele parte do círculo íntimo de Jesus. Se houve um sucessor de Jesus, foi Madalena. (Devemos lembrar que eles estavam ativamente disseminando os ensinamentos e práticas do já bastante antigo culto de Ísis/Osíris, e não uma espécie de heresia judaica, como freqüentemente se acredita.) Maria Madalena e Simão Pedro empreenderam jornadas diferentes; um fundou a Igreja de Roma, e a outra confiou seus mistérios para gerações daqueles que entenderam o valor do Princípio Feminino: os "hereges" .
João, Jesus e Maria estavam inextricavelmente ligados por sua religião (a do antigo Egito), que eles adaptaram à cultura judaica - assim como Simão Mago e Helena, que escolheram a Samaria como alvo para sua mensagem. Simão Pedro e o restante do grupo dos Doze definitivamente não faziam parte desse íntimo círculo de missionários egípcios.
Maria Madalena foi reverenciada pelo movimento ocultista europeu porque fundou sua própria "Igreja" - não um culto cristão no sentido geral do termo, mas baseado na religião de Ísis/Osíris. Algo muito próximo disso fora ensinado tanto por Jesus como por João.
João foi venerado pela mesma tradição de "hereges" porque estes eram os descendentes espirituais diretos daqueles que o consideravam seu "rei sacrificado", o mártir de sua causa, que havia sido eliminado em seu apogeu. O choque e a atrocidade de sua morte foram ressaltados pelas circunstâncias dúbias que a envolveram, e pelo que foi percebido como uma insensível manipulação dos seguidores de João por parte de seu velho rival.
Há, entretanto, um outro lado nessa história. Como já vimos, circulava o boato de que Jesus praticara magia negra com o Batista morto. A obra de Carl Kraeling e Morton Smith demonstrou que Herodes Antipas acreditava que Jesus escravizara a alma (ou consciência) de João a fim de obter poderes mágicos, pois acreditava-se entre os magos egípcios e gregos que o espírito de um homem assassinado era uma presa fácil para os feiticeiros, especialmente se possuíssem uma parte do corpo da vítima. Se Jesus realizou ou não alguma cerimônia mágica de tal tipo, um boato de que a alma de João estava sob o controle de seu antigo rival não teria causado qualquer prejuízo ao movimento de Jesus. Numa época como aquela, de mentalidade voltada para a magia, seria praticamente garantido que os discípulos de João passariam para o lado de Jesus, sobretudo porque este parecia ter poderes miraculosos. E como Jesus já dissera a seus seguidores que João era o profeta Elias reencarnado, todos provavelmente atribuíam a ele uma autoridade maior.
Contudo, apesar da noção peculiar de um Jesus que, segundo se acreditava, tinha o controle sobre as almas de pelo menos dois outros profetas, o segredo da tradição secreta não tem qualquer relação com ele. De fato, mesmo que venerem João e Madalena como indivíduos históricos reais, os hereges sempre os viram como representantes de um antigo sistema de crença. O mais importante era aquilo que eles representavam - a Suprema Sacerdotisa e o Supremo Sacerdote do Reino da Luz.
As duas tradições - uma centrada no Batista e a outra na Madalena - só se tornaram realmente discerníveis ao redor do século XII, quando, por exemplo, os cátaros surgiram no Languedoc e os templários estavam no auge de seu poder. Há uma lacuna evidente na transmissão das tradições: é como se elas desaparecessem em um buraco negro mais ou menos entre os séculos IV e XII. Foi por volta do ano 400 que os textos de Nag Hammadi - que enfatizavam o papel de Maria Madalena - foram enterrados no Egito; como vimos na Parte Um, idéias notavelmente semelhantes sobre a importância de Madalena persistiram na França, tendo alguma influência sobre os cátaros. E embora a Igreja de João tenha aparentemente desaparecido a partir de 50 d.C., mais ou menos, a continuidade da sua existência pode ser deduzida dos ataques fulminantes que a Igreja lançou contra os sucessores de João - Simão Mago e Dositheus - por mais duzentos anos. Então, novamente no século XII, essa tradição emergiu mais uma vez na veneração mística dos templários por João.
É impossível dizer com certeza o que exatamente aconteceu com ambas as tradições durante os anos em que estiveram ausentes, mas no final de nossa própria investigação sentimos que podemos arriscar um palpite. A "linhagem" de Madalena teve continuidade no sul da França, mas se houve algum registro confirmando isso, foi destruído durante a sistemática devastação da cultura do Languedoc que acompanhou a cruzada contra os cátaros. Ecos da tradição, porém, chegaram até nós através das crenças dos cátaros relativas ao relacionamento de Madalena com Jesus e do tratado Schwester Katrei de influência cátara, do qual algumas idéias foram claramente tomadas dos textos do Nag Hammadi.
É provável que a tradição de João tenha sobrevivido independentemente no Oriente Médio através dos ancestrais dos madianitas e dos nosairis, embora saibamos que ela surge na Europa séculos depois. Mas como a tradição chegou à Europa? Quem percebeu seu valor e em segredo decidiu apoiar suas crenças? Mais uma vez encontramos a resposta nos monges-guerreiros, cujas operações militares no Oriente Médio escondiam sua meta de buscar conhecimento esotérico. Os cavaleiros templários trouxeram a tradição de João à Europa para juntá-la com a de Madalena, dando assim sentido àquilo que pareciam ser mistérios masculinos e femininos separados. Devemos lembrar que os nove cavaleiros templários originais eram fruto da cultura do Languedoc, o berço e a alma do culto a Madalena, e que a tradição oculta afirma ter aprendido seus segredos com os "joaninos do Oriente".
Em nossa opinião é bastante improvável que a união dessas duas tradições pelos templários fosse mera coincidência. Afinal, sua meta primária era buscar e fazer uso do conhecimento mais antigo. Hugues de Payens e seus oito irmãos cavaleiros foram à Terra Santa com um propósito em mente: procuravam o poder do conhecimento e talvez buscassem também um certo artefato de grande valor - valor que, muito provavelmente, não era apenas monetário. Os templários pareciam saber da existência da tradição joanina antes de encontrá-la, mas como souberam dela ninguém pode dizer.
É evidente que o que estava em jogo era muito mais do que algum vago ideal religioso: os templários eram, essencialmente, homens práticos, interessados sobretudo na aquisição de poder material, e a pena por sustentar suas crenças secretas foi de um horror inimaginável. Sempre é bom enfatizar que tais crenças não consistiam apenas em noções espirituais que eles decidiram abraçar para o bem de suas almas. Eram segredos mágicos e alquímicos que, no mínimo, podem ter-lhes conferido vantagem naquilo que hoje chamaríamos de ciência. Certamente a superioridade de seu conhecimento em matérias como geometria sagrada e arquitetura encontrou expressão nas catedrais góticas, esses secretos livros de pedra que ainda hoje estão conosco e que contêm os frutos de suas aventuras no reino esotérico. Em sua busca incessante pelo conhecimento terreno, os templários buscaram expandir sua compreensão sobre astronomia, química, cosmologia, navegação, medicina e matemática, cujos benefícios são evidentes por si mesmos.
Os templários, porém, eram ainda mais ambiciosos em sua busca pelo conhecimento oculto: eles procuravam respostas para as questões eternas. E na alquimia podem ter encontrado pelo menos algumas delas. Essa misteriosa ciência que abraçaram continha, segundo se acreditava, os segredos da longevidade, talvez até mesmo da imortalidade física. Muito mais do que apenas aumentar seus horizontes filosóficos e religiosos, os templários buscavam o maior dos poderes: ter domínio sobre o tempo, sobre a tirania do nascer e morrer.
E após os templários vieram gerações e gerações de "hereges" que aceitaram o desafio e levaram adiante a tradição com igual fervor. Esses segredos obviamente tinham um forte apelo, que inspirou um número incalculável de pessoas a arriscar tudo para buscá-los - mas qual seria? O que havia nas tradições de Madalena e de João que provocava tal fervor e devoção?
Não há uma resposta única para essas questões, mas existem três possibilidades.
A primeira é que as histórias de Madalena e João Batista trazem em si o segredo daquilo que supostamente foi o "cristianismo" - sua missão original -, em total contraste com aquilo que realmente se tornou.
Enquanto à sua volta as mulheres eram aviltadas e o sexo degradado, e os sacerdotes guardavam as chaves do céu e do inferno, os hereges buscavam os segredos do Batista e da Madalena para obter conforto e iluminação. Através desses dois "santos", puderam reencontrar a trilha perdida dos veneradores gnósticos e pagãos que ruma diretamente para o antigo Egito (e mais além, possivelmente): como Giordano Bruno ensinava, a religião egípcia era muito superior ao cristianismo em cada aspecto; e, como vimos, pelo menos um templário rejeitou o símbolo primordial do cristianismo, a cruz, por ser "recente demais".
Em vez do patriarcado rígido do Pai, do Filho e do Espírito Santo (hoje masculino), os adeptos dessa tradição secreta encontraram o equilíbrio natural da antiga trindade do Pai, da Mãe e do Filho. Em vez do sentimento de culpa relacionado ao sexo, sabiam por experiência própria que este na verdade era a porta de entrada para se chegar a Deus. Em vez de sacerdotes para lhes dizer da condição de suas almas, encontravam sua própria salvação pela gnose direta ou conhecimento do divino. Tudo isso foi punido com a morte durante grande parte dos últimos dois mil anos, e era o que pregavam as tradições secretas do Batista e da Madalena. Não admira que tivessem de ser mantidas em segredo.
A segunda razão para o apelo contínuo dessas tradições está em que os hereges também mantiveram o conhecimento vivo. É muito fácil para nós hoje em dia subestimar o imenso poder que, em épocas passadas, o saber propiciava àqueles que o possuíam: a invenção da imprensa causou furor, e mesmo a capacidade de ler e escrever - especialmente entre as mulheres era rara e freqüentemente considerada com grande suspeita pela Igreja. Contudo, essa tradição secreta encorajou ativamente a sede de conhecimento mesmo entre as mulheres: homens e mulheres alquimistas trabalhavam longas horas atrás de portas fechadas para descobrir os grandes segredos que cruzavam as fronteiras da magia, do sexo e da ciência - e, ao que parece, muitas vezes os alcançaram.
A linhagem ininterrupta dessa tradição secreta inclui os construtores das pirâmides, talvez até aqueles que levantaram a Esfinge, aqueles que construíram de acordo com os princípios da geometria sagrada e cujos segredos encontraram expressão na arrojada beleza das grandes catedrais góticas. Estes foram os criadores da civilização, a qual preservaram através da tradição secreta. (Com certeza não é coincidência a crença de que Osíris dera à humanidade o conhecimento necessário para o desenvolvimento da cultura e da civilização.) E, como revelam as obras recentes de Robert Bauval e Graham Hancock, os antigos egípcios possuíam um conhecimento científico que estava além até mesmo de nossa própria época. Uma parte inextricável dessa linhagem de cientistas hereges foram os hermetistas da Renascença; sua exaltação de Sofia, a busca do conhecimento e a crença na divina natureza do homem se desenvolveram originalmente das mesmas raízes que o gnosticismo.
Alquimia, hermetismo e gnosticismo, todos inevitavelmente remontavam à Alexandria da época de Jesus, onde havia fermentado uma extraordinária mistura de idéias. Assim, descobrimos que as mesmas idéias permeiam o Pistis Sophia, o Corpus Hermeticum de Hermes Trismegisto, o que resta das obras de Simão Mago e os textos sagrados dos mandianitas.
Como vimos, Jesus estava explicitamente vinculado com a magia do Egito, e o Batista e seus sucessores, Simão Mago e Dositheus, também foram citados como "graduados" nas escolas de ocultismo de Alexandria. E todas as tradições esotéricas do Ocidente têm a mesma origem.
Seria um erro, entretanto, pensar que o conhecimento que os templários ou os hermetistas buscavam era simplesmente o que hoje chamaríamos de filosofia, ou mesmo ciência. É verdade que essas disciplinas faziam parte do que eles buscavam, mas há uma outra dimensão de suas tradições secretas, uma dimensão que seria errado omitir. Subjacente a todos os empreendimentos arquitetônicos, científicos e culturais dos heréticos estava a busca apaixonada pelo poder da magia. A importância que isso tinha para eles estaria de alguma forma relacionada com os boatos de que Jesus "aprisionara a alma" de João utilizando magia? Talvez seja significativo que os templários, cuja reverência pelo Batista não era superada por nenhuma outra, fossem acusados de adorar uma cabeça decapitada em seus rituais mais secretos.
A questão da validade e efetividade (ou não) do cerimonial da magia está fora do âmbito deste livro: o que importa é aquilo em que outros acreditaram durante séculos, e que papel teve isso em suas motivações, suas conspirações e nos planos que colocavam em ação.
O ocultismo foi a verdadeira força motriz por trás de muitos pensadores que pareciam ser "racionalistas" - como Leonardo da Vinci e Sir Isaac Newton - e por trás do círculo íntimo de organizações como a dos templários, de algumas facções da maçonaria e do Monastério de Sion. E essa longa linhagem de magos secretos, os magi, pode muito bem incluir o Batista e Jesus. .
Uma das menos conhecidas histórias do Graal tem, como objeto da busca, a cabeça decapitada de um homem barbudo em uma bandeja. Seria uma referência à cabeça de João, ao estranho poder mágico que ela supostamente possuía e concederia a quem a encontrasse? Mais uma vez, é muito fácil entregar-se ao ceticismo característico do final do século XX. O importante é que, de algum modo, a cabeça de João era considerada não apenas sagrada como também mágica.
Os celtas também tinham uma tradição de cabeças enfeitiçadas, e o templo de Abydos, dedicado a Osíris, guardava uma cabeça decapitada que, segundo se acreditava, tinha o poder de fazer profecias. Em um outro mito relacionado, a cabeça de outro deus morto-e-ressurrecto, Orfeu, foi arrastada pelo mar até Lesbos, onde começou a predizer o futuro. (E será apenas coincidência que um dos filmes mais enigmáticos e surreais de Jean Cocteau tenha sido Orpheé?)
Leonardo retratou um "Jesus" decapitado em seu Sudário de Turim. Em um primeiro momento pensamos que não passava de um artifício visual para transmitir a idéia de que, na opinião do herético Leonardo, devoto de João, aquele que fora decapitado era (moral e espiritualmente) "superior" àquele que fora crucificado. Com certeza a linha demarcatória entre a cabeça e o corpo do "homem do sudário" é proposital, mas Leonardo poderia estar sugerindo alguma outra coisa. Talvez fosse uma referência à idéia de que Jesus possuía a cabeça de João, e que de algum modo a tinha absorvido, tornando-se, nas palavras de Morton Smith, "Jesus-João". Lembremos que, no cartaz do século XIX do Salon de la Rose + Croix, Leonardo é retratado como o Guardião do Graal.
Vimos que, na obra de Leonardo, o dedo em riste simboliza o Batista: João está fazendo esse gesto na última pintura do mestre, e em sua escultura de João em Florença. Isso não é tão incomum, pois outros artistas o retrataram dessa forma, mas nas obras de Leonardo tal gesto só é usado, mesmo em outras figuras, além de João, quando se trata claramente de um modo de marcar a figura do Batista.A figura em A adoração dos reis magos que está de pé ao lado das raízes da alfarrobeira (que tradicionalmente simboliza João) aponta seu dedo indicador na direção da Virgem e da criança; Isabel, mãe de João, faz esse gesto bem na frente do rosto da Virgem no afresco A Virgem e o menino com Santa Ana, e o discípulo que de modo tão rude encara Jesus na Última Ceia perfura o ar com seu indicador, sem deixar a menor dúvida do que estava querendo dizer. E embora possa estar dizendo, com efeito, "Os seguidores de João não se esquecem", esse motivo repetido também pode ser uma referência a uma relíquia real - o dedo de João, que se acreditava ser uma das mais preciosas relíquias dos templários.
(No quadro La Peste d'Azoth, de Nicolas Poussin, uma estátua gigante de um homem perdeu a mão e sua cabeça foi decapitada. Mas o dedo indicador da mão cortada é mostrado especificamente fazendo o gesto de "João".)
Durante esta investigação ouvimos um suposto templário afirmar: "aquele que possui a cabeça de João Batista governa o mundo". A princípio consideramos tal afirmação uma grande tolice ou no máximo uma espécie de metáfora. Não se deve esquecer, contudo, que determinados objetos, ao mesmo tempo míticos e reais, sempre exerceram um tremendo poder sobre os corações e as mentes dos homens - entre eles a "Cruz Verdadeira", o Santo Sudário, o Graal e, é claro, a Arca da Aliança. Todos esses legendários objetos estão imbuídos de uma mística curiosa, como se eles próprios fossem portas onde os mundos humano e divino se encontram, objetos sólidos e reais que existem em duas realidades ao mesmo tempo. Mas se artefatos como o Graal têm poder mágico, como acreditam alguns, imagine então quanto poder não terão os restos corporais de alguém que, supostamente, incorporava a energia sobrenatural e possuía conhecimentos ocultos.
Vimos que os restos de Madalena são de suprema importância para os da tradição secreta, e pode ser que também se atribua a eles algum poder mágico verdadeiro. De qualquer forma, a ossada de Maria parece ser objeto de grande veneração e, assim como a cabeça de João, não resta dúvida de que funcionavam como um totem por trás do qual os hereges se reuniam. Aceitando-se ou não o conceito do poder mágico, estar diante da cabeça de João e da ossada de Madalena provocaria um forte impacto nas pessoas ligadas à tradição secreta: seria um momento de intensa carga emocional, inclusive pela idéia de que ali, juntos, estariam os restos mortais de dois seres humanos que foram tratados com impiedosa e calculada injustiça por vários séculos, e em nome dos quais padeceram "hereges" sem conta.
A terceira razão para o apelo duradouro da tradição secreta é a certeza moral que ela própria gera em si mesma: os "hereges" acreditam estar certos e que a Igreja estabelecida está errada. Mas não estão apenas mantendo viva uma outra religião em uma cultura "estrangeira". Mantêm viva o que acreditam ser a chama sagrada das origens e propósitos verdadeiros do "cristianismo". Entretanto, esse senso de retidão, quando estão diante do que para eles é a "heresia" da Igreja cristã, só serve para explicar por que a tradição teve tanta influência no passado. Em nossa época, na qual há uma tolerância religiosa muito maior, por que essa tradição deveria manter-se secreta?
Começamos esta investigação examinando o atual Monastério de Sion e suas atividades correntes. Qualquer que seja realmente o propósito dessa organização, Pierre Plantard de Saint-Clair indicou que ela tem um programa definido, cuja intenção é operar determinadas mudanças concretas no mundo todo, embora sua natureza precisa seja apenas objeto de especulação.
Qualquer que seja o grande plano do Monastério, parece estar relacionado com a heresia que revelamos. Na verdade, ocultas nos Dossiês secretos encontram-se certas declarações inequívocas com respeito ao Monastério ter sido responsável, ao longo da história, por liderar a tradição secreta. Essas declarações, que aludem direta ou indiretamente ao Monastério, incluem:" [Eles são] os patrocinadores de todas as heresias...", "[estão] por trás de todas as heresias, passando pelos cátaros e templários até a maçonaria..." , "agitadores secretos contra a Igreja...". Em outro documento do Monastério, Le cercle d'Ulysse (O círculo de Ulisses), publicado em 1977, sob autoria de Jean Delaude, lêem-se as agourentas palavras:
Qual é o plano do Monastério de Sion? Não sei, mas ele representa um poder capaz de se sobrepor ao Vaticano nos dias que virão.
E, como já vimos anteriormente, a obra inspirada no Monastério, Rennes-le-Château: capitale secrete de l'histoire de France, ao discutir as conexões do Monastério com a "Igreja de João", refere-se a acontecimentos que irão "virar a cristandade de cabeça para baixo".
No início desta investigação consideramos a possibilidade de que o Monastério sofria de uma espécie de ilusão coletiva de grandeza, e, como muitos outros, achávamos difícil acreditar na existência de um segredo zelosamente guardado que teria o poder de ameaçar uma grande e bem estabelecida organização como é a Igreja de Roma. Agora, após todas as nossas pesquisas, chegamos à conclusão de que a agenda do Monastério - qualquer que seja ela - deve no mínimo ser levada a sério.
De fato, a idéia de um corpo organizado que jurou derrubar a Igreja não é nova. Por exemplo, no século XVIII, quando começam a aparecer sociedades secretas que afirmavam ser descendentes dos templários, a paranóia instalou-se tanto na Igreja como em muitos estados europeus. A França em particular passou por momentos difíceis sob a sombra da vingança de Jacques de Molay - estariam os templários voltando, literalmente, para se vingar? Houve até mesmo boatos de que os cavaleiros estavam por trás da Revolução Francesa.
Entretanto, existem problemas nesse enredo da vingança dos templários. Nenhuma organização inteligente alimentaria a chama do ódio ao longo dos séculos apenas para matar um futuro monarca da França e um papa que nada tiveram a ver com a supressão dos templários ocorrida séculos antes. Essa idéia afirma que a supressão dos templários é a razão de seu ódio à Igreja - mas e se eles a odiassem desde o início? (E de acordo com o Levitikon os templários eram contra a Igreja de Roma desde seu princípio, e pelo modo como foram suprimidos.)
Nossa pesquisa demonstrou que os templários não apenas acreditavam estar de posse do conhecimento secreto sobre o cristianismo, como também se consideravam seus verdadeiros guardiães. E é preciso lembrar que os templários e o Monastério de Sion sempre estiveram inextricavelmente entrelaçados; é muito provável que os programas ou planos de um também fossem os do outro. E no Monastério de Sion encontramos uma organização na qual se unem as duas correntes heréticas - a da Madalena e a do Batista.
Pode ser que o Monastério e os templários estejam planejando apresentar a uma cristandade perplexa algum tipo de prova de suas antigas crenças, um fundamento tangível para sua tradição joanina e de veneração às deusas.
Mesmo levando em conta sua evidente obsessão com a busca de relíquias, é difícil imaginar o que poderia ser essa prova concreta, ou como algum objeto poderia representar uma ameaça para a Igreja.
Entretanto, como já vimos no caso do suposto Santo Sudário, relíquias religiosas de fato têm uma extraordinária e poderosa influência sobre corações e mentes. Na verdade, qualquer coisa supostamente ligada aos personagens centrais do drama cristão ganha uma ressonância singularmente mágica mesmo as " anti-relíquias " , aquelas ossadas encontradas em Jerusalém, imediatamente tornaram-se foco de intenso debate e de uma generalizada indagação entre os cristãos. É instrutivo imaginar como teria crescido o interesse público se as ossadas tivessem sido mais assertivamente vinculadas a Jesus e sua família. Isso com certeza teria provocado uma histeria coletiva entre os cristãos, que teriam se sentido traídos, desolados e espiritualmente desestabilizados.
As pessoas adoram uma busca - procurar por algo que seja esquivo, mas que esteja quase ao alcance das mãos. Buscar um Santo Graal ou uma Arca da Aliança sempre fugidios parece ser algo programado dentro de nós, como o entusiasmo revelado por Graham Hancock em The Sign and the Seal. Contudo, bem no fundo sabemos que esses objetos, embora possam realmente existir em algum lugar - o que é uma idéia empolgante -, são apenas símbolos, foco ou incorporação de alguns segredos antigos. Embora o Monastério de Sion e seus aliados possam estar prestes a revelar alguma justificativa concreta para suas crenças, a história por si só, como esperamos ter demonstrado, dá pistas sobre a força dessa justificativa.
Claro que tais planos são do maior interesse, mas já não são mais necessários para que se entenda a suposta ameaça à Igreja - e, por conseqüência, às raízes de toda a cultura ocidental.Tanta coisa baseia-se nos pressupostos sobre a história cristã, e tanta e intensa emoção pessoal é investida em conceitos como o de um Jesus Cristo que era o Filho de Deus e da Virgem Maria, o humilde carpinteiro que morreu por nossos pecados e depois ressuscitou. Sua vida de humildade, tolerância e sofrimento tornaram-se a imagem da perfeição humana e modelo espiritual para milhões de pessoas. Jesus Cristo, sentado à direita do Pai, olha pelos pobres e oprimidos e dá-lhes conforto - pois ele não disse "Vinde a mim os que sofrem, e eu os consolarei"?
De fato, embora seja bastante provável que Jesus tenha dito tais palavras, simplesmente não é verdade que fossem originalmente suas. Pois, como vimos, essas, e provavelmente muitas outras do mesmo tipo, eram palavras atribuídas à Chreste Isis: Bondosa Ísis, a suprema deusa mãe dos egípcios. Para Jesus, assim como para qualquer outro sacerdote de Ísis, essas palavras deviam ser bem conhecidas.
Como vimos, muitos cristãos contemporâneos estão inacreditavelmente desinformados sobre os desenvolvimentos alcançados nos estudos da Bíblia. Para muitos, idéias como a de Jesus ser um mago egípcio, ou a rivalidade entre Jesus e João Batista, parecem pouco menos do que blasfêmia - ainda que não sejam invencionices de escritores de ficção ou de inimigos de sua religião, mas conclusões de respeitados estudiosos, alguns deles cristãos. E foi há cerca de um século que os elementos pagãos da história de Jesus foram reconhecidos pela primeira vez.
Quando começamos a estudar o assunto, ficamos impressionados com a quantidade de questões que os pesquisadores levantaram sobre a tradicional história cristã, apresentando argumentos detalhados e meticulosamente arrazoados em favor de uma versão praticamente irreconhecível de Jesus e seu movimento. Ficamos particularmente espantados ao descobrir que já havia inúmeras evidências sugerindo que Jesus não era judeu e que, na verdade, era de religião egípcia. No entanto, é tão forte nossa suposição cultural de que Jesus era judeu, que mesmo aqueles que recolheram tais evidências não foram capazes de dar o passo lógico final e concluir que o peso desse material realmente revela que Jesus não era de religião judaica, mas sim egípcia.
Muitos estudiosos contribuíram fortemente para a criação de uma imagem nova e radicalmente diferente de Jesus e seu movimento. Desmond Stewart argumentou de modo soberbo em seu livro The Foreigner que Jesus fora influenciado pelas escolas de mistério egípcias; novamente, porém, Stewart vê a conexão egípcia apenas como uma modificação do judaísmo essencial de Jesus. E o professor Burton L. Mack, embora argumente que Jesus não era de religião judaica, também rejeita o material das escolas de mistério presente nos Evangelhos com base em que este fora acrescentado posteriormente uma suposição que não encontra qualquer apoio nas pesquisas realizadas.
Mesmo o professor Karl W Luckert diz:
Esse nascimento angustiado [do cristianismo]... foi contudo verdadeiro trabalho de parto da mãe do cristianismo, a antiga religião egípcia que expirava. Nossa velha mãe egípcia morreu nos séculos durante os quais seu vigoroso rebento surgiu e começou a prosperar no mundo mediterrâneo. Suas dores de parto foram sua agonia da morte.
Ao longo de sua vida de quase dois mil anos, essa filha cristã nascida da Mãe Egito tem permanecido relativamente bem informada sobre sua antiga tradição paterna... [mas] até hoje nada se falou sobre a identidade de sua falecida mãe religiosa...
Mesmo tendo defendido de modo magnífico o argumento em favor das raízes egípcias do cristianismo, Luckert ainda se desvia da questão. Para ele a influência do Egito foi indireta, um eco distante das próprias origens do judaísmo no Egito. Se Jesus, porém, ensinava material das escolas de mistério egípcias, com certeza faz mais sentido que ele o tivesse aprendido em primeira mão, necessitando apenas cruzar a fronteira, em vez de pinçá-lo nas fragmentadas e imprecisas alusões do Antigo Testamento.
De todas essas autoridades, somente uma efetivamente dá o último e ousado passo lógico. Morton Smith, em sua obra Jesus the Magician, declara inequivocamente que as próprias crenças e ações de Jesus eram de fonte egípcia - e, significativamente, ele baseou sua assertiva no material extraído de certos textos de magia do Egito.
A obra de Morton Smith, embora completamente ignorada por muitos comentadores da Bíblia, foi acolhida com cautelosa aprovação por alguns. Contudo, a visão acadêmica não forma, conforme averiguamos durante nossa investigação, de modo algum um quadro completo. Ao longo dos séculos, muitos grupos compartilharam uma crença secreta no passado egípcio de Jesus e de outros personagens do drama do primeiro século, e esses "hereges" também nos forneceram muitas outras percepções sobre as origens do cristianismo. É interessante que essas idéias estejam agora sendo corroboradas pelos estudos modernos do Novo Testamento.
Se o cristianismo foi realmente um produto da religião egípcia, e não a missão pessoal do Filho de Deus, ou mesmo um desenvolvimento radical de uma forma de judaísmo, então as implicações para nossa cultura são tão básicas e de alcance tão amplo que aqui só podem ser esboçadas.
Por exemplo, ao voltar as costas para suas raízes egípcias a Igreja perdeu a noção fundamental da igualdade arquetípica entre os sexos, pois Ísis sempre foi contrabalançada por seu consorte Osíris, e vice-versa. Em princípio, esse conceito no mínimo encorajava a que se tratasse homens e mulheres com o igual e devido respeito, pois Osíris representava todos os homens e Ísis, todas as mulheres. Mesmo em nossa era secular ainda sofremos as conseqüências dessa negação do ideal egípcio: pois embora o sexismo não seja um fenômeno exclusivo do Ocidente, suas manifestações diretas em nossa cultura devem muito aos ensinamentos da Igreja sobre o lugar da mulher.
Além disso, ao negar seu passado egípcio, a Igreja também rejeitou, com freqüência de forma especialmente virulenta, todo o conceito do sexo como sacramento. Ao colocar um celibatário Filho de Deus à frente de um patriarcado misógino, ela perverteu a mensagem "cristã" original. Pois os deuses que o próprio Jesus venerava eram parceiros sexuais, e essa sexualidade era objeto de celebração e emulação entre seus adoradores - ainda mais significativo, os egípcios não eram tidos como um povo particularmente licencioso, mas eram sim notáveis por sua espiritualidade. As conseqüências para nossa cultura da atitude da Igreja em relação ao sexo e ao amor sexual para nossa cultura foram terríveis: tal repressão tem sido responsável não apenas pelo tormento individual e por uma desnecessária busca de salvação da própria alma, como também por crimes sem conta contra mulheres e crianças, muitos dos quais as autoridades preferiram ignorar.
Existem outras colheitas amargas desse grande erro, de uma Igreja cristã que negou suas verdadeiras raízes.Por séculos a Igreja perpetrou atrocidades contra os judeus, com base na crença de que o cristianismo e o judaísmo eram rivais. A Igreja considerava os judeus blasfemos por negarem o messiado de Jesus, mas se Jesus não era judeu, então há ainda menos razões para os horrores cometidos contra milhões de judeus inocentes. (A outra acusação principal utilizada para justificar os ataques aos judeus - a de que eles mataram Jesus - já há muito foi reconhecida como uma falácia, simplesmente porque foram os romanos que o executaram.)
Há ainda um outro grupo que atraiu a hostilidade da Igreja ao longo dos anos. Em seu fervor de estabelecer-se como a única religião, o cristianismo pôs-se em permanente estado de guerra contra os pagãos. Templos foram destruídos e pessoas torturadas e mortas, da Islândia à América do Sul, da Irlanda ao Egito, em nome de Jesus Cristo. Contudo, se estivermos certos, se o pr6prio Jesus era pagão, então esse fervor cristão não apenas negou a humanidade comum, mas também os princípios de seu próprio fundador. Essa questão ainda é relevante, pois os pagãos contemporâneos continuam a ser atormentados pelos cristãos em nossa sociedade atual.
Toda a nossa cultura é inquestionavelmente judaico-cristã, mas, e se estivermos certos e ela devesse ser, de fato, egípcio-cristã? Claro que isso pode ser apenas uma hipótese, mas talvez fosse mais interessante basear nosso ideal religioso na magia e nos mistérios das pirâmides do que no irado Jeová. Com certeza, a religião que tem como trindade o Pai, a Mãe e o Filho exerceria uma poderosa atração e um profundo sentimento de conforto.
Seguimos o curso contínuo da crença "herética" da Europa, a corrente secreta do mistério da deusa, da alquimia sexual e dos segredos que envolvem João Batista. Os hereges, assim acreditamos, guardam as chaves da verdade sobre a histórica Igreja de Roma. Apresentamos suas razões nestas páginas, passo a passo, à medida que nós mesmos fazíamos as descobertas e víamos o quadro geral surgindo do caos de informações - e, na verdade, de desinformações.
Acreditamos que, no geral, os hereges têm reivindicações que merecem ser ouvidas. Com certeza, as figuras históricas de João Batista e Maria Madalena sofreram uma grave injustiça, e o momento de acertar as contas já passou há muito tempo. Se o mundo ocidental ainda tem esperança de adentrar o novo milênio livre da repressão e da culpa, então precisamos respeitar o Princípio Feminino e procurar compreender o amplo conceito da alquimia sexual.
Contudo, se apenas uma única lição puder ser absorvida de toda a jornada que empreendemos nesta investigação e das descobertas que realizamos, não é a de que os hereges estão certos e a Igreja errada. É de que há a necessidade, não de mais segredos zelosamente guardados e guerras santas, mas de tolerância e abertura para novas idéias, livres de preconceitos. Sem limites para a imaginação, para o intelecto, ou para o espírito, talvez possamos empunhar e levar adiante a tocha que foi acesa por luminares como Giordano Bruno, Henrique Cornélio Agripa e Leonardo da Vinci. E talvez até mesmo cheguemos a apreender totalmente este antigo adágio herético: Não sabeis que sois deuses?